Tathiana Lopes – Realizadora / Diretora de Produção

O desafio de trabalhar com arte no Brasil segue num crescente assustador. Em pleno 2017, as pautas giram em torno de censuras e discussões tendenciosas e opressoras, que distorcem o real valor que a cultura e a arte representam. Estamos regredindo a passos largos, e numa velocidade espantosa, caminhando numa direção que causa prejuízos sem fim. O que estamos vivendo vai além de uma crise política e econômica, estamos perdendo valores fundamentais que interferem na maneira como nos relacionamos e nos desenvolvemos como sociedade.

Ainda assim, com todo o cenário pessimista que se apresenta, vemos um grupo resistente de fazedores; são produtores, artistas, gestores e educadores que continuam persistindo, colaborando e somando forças para continuar realizando, compartilhando ideias e fazendo a arte circular em nossa cidade.

Mais do que nunca, precisamos potencializar essas ações, insistir no diálogo, estimular o debate, unir verdadeiramente nossas experiências e saberes para que a democratização do acesso a cultura se torne real. Arte é educação e não pode desacreditada como estão tentando fazer de forma tão arbitrária. É através da educação e pela arte que conhecemos nossa história, nossos valores, heranças e tradições. Ampliamos nosso conhecimento e percepção de mundo, alargamos nossa visão enquanto indivíduos dentro de toda a diversidade em que vivemos. É o que nos garante uma identidade.

2017 é um ano que exige nos reinventarmos constantamente, sem pausas, e isso naturalmente nos leva a um estado de reflexão e inventividade, além de muita insistência para continuarmos realizando um projeto que trabalha na contramão de toda essa crise.

Então a partir das possibilidades que um festival como o Novas Frequências trás, de múltiplas experimentações, colaborações, intercâmbios e diversidade cultural, chegamos à 7ª edição, propondo um reencontro as nossas raízes, à infância, à natureza, estimulando reflexões com base em nossas origens. Um convite à escuta, ao pensamento, a observação, a contemplação, e autoconhecimento, que serão estimulados e poderão ser experimentados através das diferentes ocupações e investigações feitas pelos artistas.

Damos continuidade às muitas colaborações que construímos ao longo desses 7 anos, ganhamos novos parceiros, ocupamos pela primeira vez espaços que ainda não tivemos chance de explorar, convidamos um público novo – as criancas – e criamos mais oportunidades de circulação e conexão entre público, artistas, insituições e parceiros.

Serão 8 espaços da cidade entre museus, igreja, parque e teatros, que receberão, instalações, shows, festas, workshops e performances resultantes de residências artísticas com18 artistas de 10 países diferentes.

Para nós, é mais uma conquista chegar até aqui!

 

 

Magnetoceptia – Maria de’ Medici & Maria Stuart

Maria de’ Medici e Maria Stuart é uma tragédia eletromagnética pós-elisabetana baseada na gola real Medici, ou gola Stuart, um elemento de indumentária histórico que funciona como uma “renda audível”, uma antena que capta ondas de rádio de acordo com o espaço em que se está, e faz se ouvir por meio de sons eletrônicos.

Funciona como um um símbolo e um instrumento de regência global do espectro eletromagnético e do objeto sintético de desterritorialização / re-territorialização. A performance pode ser executada em um sem número de espaços indoor e outdoor, e a cada vez resultará em um evento sônico diferente determinado por sinais que estão presentes na locação em questão e moduladas pelos movimentos do portador da peça e pela relação entre ambos os elementos.
O nome refere-se às concorrências econômicas e estéticas, e os conflitos confessionais dos regimes do fim do século XVI na Europa. Estas questões encontraram sua manifestação na guerra da renda dourada, realizada por duas das mais influentes figuras política da monarquia européia.
Maria de Medici e Maria Stuart nunca se encontraram fisicamente no espaço e no tempo, as suas semelhanças permanecem como o máximo poder político e fracasso, o vôo para o exílio e a desnacionalização, a morte na pobreza e a decapitação.
Os símbolos de prosperidade que se revelam acima da cabeça do usuário, como uma extensão física de si mesmo, podem ser desconstruídos como uma mera e funcional antena, o que marca uma virada à uma estética da transparência, em que o valor estético e a revelação da função do aparato é enfatizado.
Portões audíveis para o fenômeno invisível desta situação momentânea são abertos, imergindo o público, não só em um amplo e incalculável espectro sonoro, mas também em uma experiência sinestésica holística e irreproduzível.

 

Magnetoceptia é um projeto colaborativo de Devi de Vree (NL) e Patrizia Ruthensteiner (AT)

https://magnetoceptia.wordpress.com

Release enviado pelas artistas. 2017.

Som da Terra, Sinal da Terra: Energias e Magnitudes da Terra nas Artes.

O rádio era escutado antes mesmo de ser inventado.

O rádio era escutado antes mesmo de ser inventado. Era escutado antes que alguém soubesse que ele existia. Era escutado na primeira tecnologia sem fio: o telefone. O telefone serviu a dois grandes propósitos: foi um instrumento científico usado para investigar a energia ambiental, e foi um dispositivo estético usado para experenciar os sons da natureza. O telefone também iria encontrar sucesso no campo das comunicações. A primeira pessoa a ouvir o rádio foi Thomas Watson, assistente do Alexander Graham Bell. Ele o ligou nas primeiras horas da noite em uma longa linha de metal que serviu como uma antena antes mesmo que as antenas fossem inventadas. Outros usuários do telefone escutaram o rádio por duas décadas antes que Guglielmo Marconi ou qualquer outra pessoa o inventasse. Alguns ouviram música e outros escutaram sons que eram de fora desse mundo. Com o passar do tempo, o rádio fugiu para uma região selvagem, um lugar onde a natureza já havia existido um dia, sendo afastada pela tecnologia, um lugar onde a natureza não podia ser encontrada. Cientistas, soldados e generais ouviram o rádio até 1960, quando músicos, artistas e seus públicos redescobriram o rádio. E agora, quando os “sem fios” antigos encontram os “sem fios” novos, muitas pessoas escutam.

 

Artes Energéticas

A primeira vez que eu encontrei o rádio natural foi enquanto tentava entender composições dos anos 60 do autor americano Alvin Lucier e obras dos anos 90 do artista australiano Joyce Hinterding que, apesar de muito diferentes, tinham o rádio natural como um elemento em comum. O trabalho deles levantou questões específicas, mas também grandes questões que exigiram o repensar da relação entre a cultura e o eletromagnetismo, a história das telecomunicações, a história da música eletrônica e, em última análise, as energias e magnitudes da terra nas artes, abrangendo muitas décadas. A minha tentativa de responder ao trabalho deles começou como um artigo e terminou com esse livro.

(…)

O rádio natural no qual Lucier e Hinterding se engajaram artisticamente na segunda metade do século vinte foi escutado esteticamente por Watson no último quarto do século dezenove. Todos eles foram atraídos a isso pelas suas próprias vocações no som: Watson era um engenheiro de telecomunicações, Lucier um compositor da tradição clássica ocidental, e Hinterding um artista que usa o som. Os três são colocados como indicadores na estrutura desse livro: começando com Watson no último quarto do século dezenove, passando por Lucier nos anos 1960, e terminando com o trabalho recente de Hinterding. Alvin Lucier começou a explorar o eletromagnetismo como um material artístico bruto. Ele não estava sozinho ao sentir que o eletromagnetismo era um material viável para as artes. A música experimental, dada a sua proximidade ao eletrônico e a energia palpável transferida entre som e sinal, foi propícia para o material se tornar imaterial. Essa ideia também podia ser encontrada na arte visual de James Turrel, onde a luz era entendida eletromagneticamente, e na arte conceitual de Robert Barry, que observava a arte visual ocupada por um pequeno remendo (luz visível) do espectro eletromagnético e que o resto do espectro estava aberto para as possibilidades artísticas.

Nos anos 1990, quando Joyce Hinterding começou a se interessar pelo rádio natural, houve desenvolvimentos substanciais do som nas artes, “faça você mesmo” e o hacking de hardware, comunidades amadoras, ciências e as artes, e uma ubiquidade intensificada das comunicações com uma espinha dorsal sem fio. Ela está agora entre um número crescente de artistas, artistas de mídia, e músicos que se movem dentro do espectro eletromagnético e através dos ambientes energéticos tão facilmente tanto quanto essas energias se movem neles.

Apesar da onipresença do eletromagnetismo na natureza, geração elétrica e motores, telecomunicações e mídias eletrônicas, física, e assim por diante, houve muito poucos escritos sobre tais fenômenos nas histórias e nas teorias das artes. Não faz muito tempo que essa mesma condição pertenceu a outra grande energia: o som. Existem similaridades: o jeito como o eletromagnetismo tem recebido atenção entre praticantes na última década se assemelha a forma como praticantes engajaram o “som” nos anos 1980. Na verdade, algumas das mesmas pessoas estão envolvidas.

A exceção à escassez de bolsas de estudo está o trabalho de Linda Henderson “Em Contexto, um tratamento meticuloso da ciência, tecnologia e do oculto nas artes visuais e antiretinais”. O presente esforço pode ser lido como uma extensão do capítulo oito desse livro  – “O grande vidro como uma pintura de frequência eletromagnética”  – enquanto eu adiciono questões da incursão cultural do eletromagnetismo e sua relação com os meios de comunicação e durante diferentes períodos nas artes e na música.

Alguns dos sons naturais que Watson e outros escutaram no telefone foram percebidos como musicais, especialmente os curtos e deslizantes sons e assobios. De fato, o termo “atmosfera musical: mais tarde se torna comum nos alojamentos científicos, e pesquisadores no inícios dos anos 1930 descreviam atmosferas ao longo de um contínuo musical, quase musical e não musical. Na vanguarda artística e musical, o meio termo foi negociado inicialmente em termos de acomodação de barulho, primeiramente formalizado no manifesto futurista do italiano Luigi Russolo (“Arte dos Ruídos”, de 1913) e ecoou no chamado de John Cage “Por Mais Novos Sons”, de 1942. Durante os anos 1920 e 1930, a ciência do assobio e da vanguarda musical compartilhou tolerâncias parecidas e predileções pela plasticidade do que eram e do que não eram sons musicais; e pode ser dito que Watson também era um ouvinte dos tipos de ruídos e sons estranhos que seriam passíveis para a vanguarda quatro décadas depois.

 

Trecho de Earth Sound Earth Signal: Energies And Earth Magnitudes In The Arts. 2014. Douglas Kahn. University of California Press.

“Música deve ser política”: uma entrevista com Aïsha Devi

Seu álbum Hakken Dub/Throat Dub é gutural e xamânico. Na tradição oriental, a música é conectada com a espiritualidade.

A música faz parte do mundo espiritual e tem uma grande influência na cura e no bem-estar. Pois é tudo sobre frequências…Cada tom da voz causa um impacto diferente no corpo.

 

Você teve formação vocal. É difícil transitar entre os diferentes modos do canto, de um canto mais meditativo ao “clássico modo” ocidental? Você pesquisa estas diferentes técnicas?

Quando se faz música, você está constantemente aprendendo. Não é possível dizer a si mesmo ‘Agora estou completa’. Durante vinte anos fui treinada no método europeu com a técnica soprano, que já é baseada na respiração, porém centrada no controle da sua voz. É uma técnica muito exigente. A voz na ópera possui muitas regras, então você está sempre cantando como se estivesse restrito à uma caixa. Eu cantava deste jeito e tentava colocar isso na minha música, mas quanto mais eu fazia musica, mais eu precisava explodir essas restrições. Eu sabia como cantar como uma soprano e cantei em muitos corais peças de clássicos como Mozart e Beethoven. Então percebi que eu realmente precisava quebrar essas regras. Quanto mais eu experimentava com a minha voz, melhor eu me sentia. Mesmo cinco anos atrás eu usava minha voz como um instrumento que se esticava, que se quebrava. Eu não considerava a minha voz como algo sagrado. Eu realmente gosto da ideia de “quebrar” a minha voz, e de quebrar as regras da voz. Desde de que comecei a meditar, cinco ou seis anos atrás, sinto com se algo tivesse se aberto em meu cérebro, e não há caminho de volta.

Eu cantava mantras e fazia ‘zumbidos’ com frequência. Quanto mais mantras eu fazia desta maneira, mais o cérebro se colocava em outra vibração. Não é esotérico, é puramente matemático e neurobiológico. Cada vez menos eu consigo cantar do ‘modo europeu’. É também uma questão de harmonização. Ravi Shankar explicou isso muito bem. Na Europa temos as escalas de quintas, sétimas, temos harmonias especificas. Mas na Índia ou no Oriente, a escala é totalmente diferente. E a partir deste ponto de vista a escala é mais conectada à uma viagem cerebral extraordinária. Isso significa que seu cérebro não está sendo restringido por uma escala, e pode escapar, viajar e se conectar com a natureza e seus elementos. É uma jornada fantástica, estou aprendendo todos os dias.

 

Você também escolheu seu nome cívico como o nome deste projeto. Isso se relaciona com a busca por suas raízes e identidade? 

Cada músico tem a sua própria jornada. Para mim, a música é como um iniciador. É como viajar e ir tentando encontrar a verdade e o conforto na vida. Quando se é músico, ou artista, há algo que não vai muito bem no seu mundo. Eu tive o impulso de me expressar musicalmente. Eu me virei em direção a esta cultura, também fazendo muita meditação quando viajei à India, já que não conheço meu pai. Ele é indiano-nepalês com raízes tibetanas e de Burma (Mianmar) e agora comecei a procurar por ele. Talvez ele não esteja mais vivo. Esta busca pela minha própria identidade correspondia com as mudanças em mim mesma e na minha música. Tudo me dizia para ser a mim mesma, ser o meu próprio filtro para este mundo, pegar o meu nome de volta e recomeçar nua. Ao mesmo tempo, a identidade não é tão importante. É um alibi fantástico para descobrir esta cultura e esta parte que está em mim, mas eu nunca me sentirei confortável neste mundo, de qualquer jeito. Isto não é baseado em descobrir quem se é, é muito mais sobre perceber quem somos como um coletivo humano e retornarmos aos nossos rituais.

 

Isto é interessante, que por um lado você tem esta faceta espiritual, com suas raízes orientais, porém por outro lado, seu avô era um físico na Suíça. Sua história me parece fascinante. 

É apenas uma família disfuncional, como qualquer outra família. Eu cresci com a minha avó, então viajei muito com ela quando era criança. Ela faleceu há 3 meses atrás. Há muito sobre ela no meu próximo álbum. São muitos sentimentos diferentes que são fruto daquela infância isolada. Visitar muitos países abriu a minha cabeça naquela idade. Aquela solidão me encorajou a ter esses diversos mundo imaginários na minha cabeça. Minha mãe era uma hippie, minha meia irmã é jamaicana. De certa maneira, é como ter o mundo inteiro na família, o que é fantástico porque significa que não existe apenas uma perspectiva, mas centenas delas. É isto que estou aplicando na minha vida e na minha música. Todo mundo tem uma perspectiva diferente e a ideia é não julgar esta outra perspectiva, mas tentar trazê-las todas juntas. Meu avô era físico, mas ele sempre teve um grande interesse pelas artes e era amigo de Carl Gustav Jung. Ele era uma pessoa muito espiritual. A maioria dos físicos são pessoas incríveis, são apaixonados pelo mundo e pelo cosmos. São, talvez, os primeiros a entender que o cosmos é apenas uma coisa relativa e que vivemos uma ilusão visual, tudo pode ser transformado em outra coisa. É muito interessante contar com a física e tentar entender o mundo por uma perspectiva física. Não é tão distante assim dos textos escritos em 2.000 a.c. em Veda. A Metafísica é muito importante para mim.

 

Então você também segue os últimos desenvolvimentos do CERN? O nosso futuro é uma preocupação?

Na verdade estou cheia de esperança. Acho que vai ser um momento fantástico. Eu moro muito perto do CERN. Meu avô também trabalhou lá. Eles sabem muitas coisas sobre anti-matéria e coisas que os europeus não querem muito saber. Não é bom para o capitalismo, mas isso chegará.

 

Trecho da entrevista de Aisha Devi para o site da SHAPE Platform. 09/06/2015

http://shapeplatform.eu/2015/aishadeviinterview/

Espiral

“O som não possui face oculta, ele é todo adiante detrás e fora dentro, sentido de ponta-cabeça com relação à lógica mais geral da presença como aparecimento, como fenomenalidade ou como manifestação, e, assim, como face visível de uma presença em si subsistente. (…) Escutar significa entrar nessa espacialidade pela qual, ao mesmo tempo, eu sou penetrado: porque ela se abre em mim bem como ao redor de mim, e de mim assim como em direção a mim: ela me abre em mim tanto quanto ao fora, e é por uma tal dupla, quádrupla ou sêxtupla abertura que um “si” pode ter lugar.”[1]

Flutua, ecoa, passa, se transforma… Cria-se a partir dos elementos existentes no espaço e é criador de comportamentos e ritmos locais. Sendo onipresente, o som preenche todos os ambientes: interno e externo, natural, urbano ou rural.

As paisagens acústicas são compostas essencialmente por três elementos: a biofonia, geofonia e antropofonia [2]. Cada um, respectivamente, representa os sons emitidos por qualquer animal, sons físicos da natureza, como trovões, chuva, vento etc. e sons produzidos por seres humanos. Juntos ou separados, estes são capazes de refletir todos os processos e relações sociais e naturais que ocorrem no espaço-tempo.

Ciclos sazonais, diurnos, noturnos, lunares, padrões ou marcos sonoros naturais ou criados, estabelecem um ritmo e modo de vida aos animais e humanos e se apresentam de diferentes formas em cada paisagem.

Em Istambul, por exemplo, todos os dias, por cinco vezes ao dia a cidade é preenchida pela leitura do alcorão (livro sagrado do islã) feita ao vivo dentro de cada mesquita, presente no local, e projetada para a população através de alto-falantes instalados nas torres de cada uma delas. Este padrão sonoro tem como objetivo convidar os fiéis à oração, estabelecendo assim um comportamento diário e uma paisagem acústica característica.

Já em locais onde a antropofonia tem menor ou nenhuma interferência no ambiente sonoro, os ciclos naturais, elementos orgânicos e físicos, criam acústicas específicas para cada local e tempo. Neste tempo natural, os modos de vida da fauna presente são influenciados diretamente separando os corais matutino, diurno, vespertino e noturno de mamíferos, aves e anfíbios.

Na aldeia indígena Kayapó, situada numa área da floresta Amazônica ainda pouca alterada pelas atividades humanas, é possível perceber claramente as diferenças acústicas nas transições da noite para o alvorecer, do alvorecer para o entardecer, e assim por diante. Ao se escutar o primeiro pássaro (por volta das 4h da manhã), os sapos se silenciam e só retornam ao anoitecer, quando o canto dos pássaros começa a se extinguir novamente.

A comunicação acústica dos animais é essencial e serve para proteger a si mesmos, aos seus territórios, se reproduzirem e se alimentarem. Desta forma, uma nova linha de pesquisa chamada

“ecologia da paisagem sonora” surge para estudar os processos e interações sonoras de todos os seres, na escala espacial e temporal. Este ramo da ciência nos fornece informações sobre a saúde do habitat, auxilia o direcionamento para estratégias de conservação e favorece a identificação e preservação de espécies, entre outras abordagens.

No livro A grande orquestra da natureza, do músico e naturalista Bernie Krause, diversas experiências sonoras vividas pelo autor são relatadas e princípios da ecologia da paisagem sonora são abordados para alertar sobre os impactos das atividades humanas no ambiente. O que ele tem percebido, principalmente, é que ao analisar um gráfico sonoro de um habitat saudável é possível distinguir as vocalizações de cada animal e identificar padrões de comportamento. Já em biomas danificados, ameaçados ou alterados, as biofonias perdem a densidade, diversidade, se desarticulam e se tornam caóticos, podendo levar anos até que as vocalizações se reconstituem novamente. Assim a ecologia da paisagem sonora vai além da abstração das vozes de indivíduos isolados, mas sim analisa o espaço em sua totalidade considerando toda a comunidade acústica, suas interações e transformações.

Sobre essa totalidade, o trio Luisa Lemgruber, Gabriela Mureb e Sanannda Acácia criam um ambiente que se utiliza de diversos elementos naturais, biológicos e não biológicos para uma condução entre estados e intensidades sensoriais, explorando os limites da paisagem.

 

Referências

 

[1] Jean-Luc Nancy. À escuta. 2014

[2] Bernie Krause. A grande orquestra da natureza: Descobrindo as origens da música no mundo selvagem. 2013

 

Luisa Lemgruber é artista sonora, geógrafa e atração do Festival Novas Frequências ao lado de Gabriela Mureb e Sanannda Acácia.

Esperando Otomo

No começo desse ano eu sonhei que tocava uma viola-de-cocho preparada em uma improvisação com o músico japonês Otomo Yoshihide, que por sua vez tocava um shamisen elétrico. O shamisen elétrico aparecia nesse sonho como um ente-instrumento, talvez alguma associação do meu inconsciente à tradição musical de origem de Yoshihide e à própria guitarra elétrica, instrumento com o qual vinculo a imagem do músico japonês desde que comecei a escutar sua música. Esse sonho me fez pensar que muitas vezes o sonhar com música talvez seja uma livre improvisação da nossa consciência, assim como a própria música improvisada é um sonho daquilo que a gente chama de música, ou desse acúmulo de consciências e vivências sonoras ao longo de um percurso de escutas, leituras e experiências com o som. E nessa instantaneidade improvisacional onírica, se compunha um lugar-emaranhado de irradiações, num fluxo, gestual, texturial, sonoro, ruidístico, operado pela relação entre dois ente-instrumentos na construção poética e política de um espaço sonoro.

Esse sonho ocorreu dentro de um contexto de espera da confirmação da vinda de Otomo Yoshihide pela primeira vez ao Brasil. Talvez um tempo de latência musical em que o silêncio se adensa à espera do gesto que deflagra o primeiro som, o tempo de espera que antecede a improvisação. Durante dois anos mantive em minha casa uma prática de diária de improvisação, num gesto cotidiano de registro em forma de diário. Após um dia de práticas ordinárias, cotidianas, me centrava para fazer uma improvisação e seu registro. A cada dia que se passava eu percebia que esperava esse momento do dia chegar, ao ponto de algumas vezes sonhar com a improvisação que viria. E de alguma forma, percebia dia após dia, que a improvisação se impregnava das coisas que eu vivia, escutava, pensava, acumulava, ainda que eu buscasse um esvaziamento consciente pra viver o instante da improvisação. E é sobre essa espera e sobre o que esperar da vinda de Otomo que eu também gostaria de falar aqui.

Considerado o espectro amplo e variado de sua produção, desde os anos de 1980 até hoje, Otomo pode ser considerado um músico que escapa a quaisquer tentativas de associação a uma única corrente musical: do jazz ao noise, do rock às performances com os turntables, da improvisação à instalação sonora e ainda com uma intensa produção de trilhas sonoras para cinema e TV. Ele prefere definir-se apenas como um músico que se limita a fazer sua arte, seguindo suas temáticas e interesses, ainda que aos outros possa parecer incoerente ou contraditório. Entretanto, se definir seu trabalho a um limite estilístico é algo quase impossível, o reconhecimento da originalidade e grandeza de seus trabalhos é incontornável. Álbuns como Consume red e Playing Stardards (com o grupo Ground Zero) ou o memorável tributo a Eric Dolphy em Out to lunch (com a OYNO); isso sem falar nos outros projetos em grupos, ou diferentes parcerias improvisacionais; sem contar também com os álbuns Cathode (1999) e Anode (2001), que foram os que me introduziram ao seu universo criativo; deixam evidente uma poética que entrelaça essa complexa teia de trabalhos distintos, a improvisação.

Otomo opera, pensa e cria como um improvisador que tem uma pulsão de busca e se lança ao inesperado sempre. Talvez por isso esteja aberto a trabalhar com diferentes músicos e a propor descentralizar os projetos que contam com grandes formações. Sua postura é de se colocar nesses desafios como um barqueiro diante das forças da natureza, saber interagir com a força do mar e do vento para, a partir dela, conduzir sua própria trajetória. Entrar na onda e ao mesmo tempo ser parte constitutiva dela me parece uma imagem muito pertinente à sensação que tenho ao improvisar com outras pessoas. O instrumento, qualquer que seja a sua natureza, torna-se o veículo dessa ação de se adentrar nesse mar.

Suas improvisações solo, tanto com a guitarra elétrica, quanto com as vitrolas, me transportam de volta ao sonho inicial, o shamisen elétrico. Ali consigo escutar algo de tradicional ligado à música japonesa. Não uma tradição milenar, mas uma tradição que o próprio Otomo cita como sua grande primeira influência, o gesto improvisacional de Masayuki Takayanagi, guitarrista japonês pioneiro no free jazz. Ou talvez ainda mais do que isso: Takayanagi, juntamente com o saxofonista Kaoru Abe, levou o free jazz ao limite e às portas de entrada da noise music. A imagem em sonho desse instrumento híbrido, talvez seja a representação do que o prório Otomo chama de tradição musical quando se refere a esses dois músicos.

Certo é que a espera que antecede a improvisação é fundamental. O silêncio dessa espera é a escuta do som antes que o som se faça como fenômeno acústico no instante. E o sonho, nesse caso, é a improvisação da consciência de um ouvinte desse mar profundo e diverso que é a música de Otomo Yoshihide.

Marco Scarassatti, Artista sonoro e professor da UFMG.

Daniel Limaverde apresenta: Sweet Spot

Especialmente para o Novas Frequências e com o apoio do Red Bull Station em São Paulo, onde, por duas semanas, desenvolveu o trabalho em residência, Daniel Limaverde apresenta um projeto que trabalha a ressignificação dos espaços públicos do Rio de Janeiro através da criação de realidades virtuais sonoras. “Sweet Spot” é uma série de peças de áudio para serem escutadas em lugares específicos. Toda a série é disponibilizada gratuitamente para download e streaming e pode ser ouvida em qualquer smartphone e fones de ouvidos. O ouvinte pode descobrir a quais locais as faixas são associadas por meio de seus respectivos títulos: os nomes das peças são números de coordenadas geográficas de GPS, latitude e longitude, que quando inseridas em um mapa online como o Google Maps revelam o ponto preciso para audição. Cada faixa desenvolve uma construção narrativa relacionada diretamente ao espaço.

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Todas as faixas de “Sweet Spot” estão em áudio binaural – ou áudio 3D -, um método de reprodução que simula espacialização, dando a impressão de que os eventos retratados em cada peça estejam de fato ocorrendo no espaço ao redor do ouvinte, fazendo com que os sons escutados nos fones de ouvido se confundam com os sons do ambiente e vice versa.

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Instruções:
– Você vai precisar de fones de ouvido comuns e um celular com acesso a internet e player de música;
– Baixe os áudios em mp3 para o seu celular (ou faça streaming usando seu 3G/4G) no link: www.daniel-limaverde.com;
– Acesse maps.google.com ou abra o app do Google Maps no celular (não use o Maps para iPhone, apenas o Google Maps!);
– Insira o título do áudio que você vai ouvir na barra de buscas do Google Maps exatamente como este está escrito – essas são as coordenadas em latitude e longitude com traços, números, pontos e vírgula;
– O lugar exato em que você deve ouvir o áudio aparecerá no mapa;
– Coloque seus fones de ouvido, dê play e ouça;

Faixas:

-22.95965106702441, -43.21014803971113
-22.963464, -43.209701
-22.984472, -43.205189
-22.97867153326866, -43.18880196765301
-22.89685471071734, -43.17796179438719
-22.89623868221819, -43.18080356073608
-22.896574, -43.187125

 

(disponíveis para download em 03/12).

 

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Identidade Visual do NF 2016

Segundo Chico Dub, curador e diretor artístico do Novas Frequências: “Nossa inspiração para a identidade visual do festival este ano, para a construção dos nossos mapas utópicos (em prol de uma ‘Nova Ordem Mundial’) são os chamados ‘mapas topográficos’ – principalmente aqueles feitos em impressora 3D. Queríamos uma Pangea idealizada, continentes misturados de forma lúdica e até mesmo países misturados com outros países convivendo lado a lado. A estética da topografia aplicada e impressa em acrílico foi a forma que buscamos para contar essa história.”

A direção de arte desta edição do festival ficou à cargo do estúdio criativo Hardcuore, dirigido pelos designers e diretores de arte Breno Pineschi e Rafael Cazes: “Quando o Chico me procurou há dois meses atrás para fazer esse projeto, a grande inspiração dele era o ‘Utopia’, do Thomas More, livro que completa 500 anos esse ano. E para o projeto, nada mais interessante que recriar uma ‘Pangea 2.0’ que seja não somente o encontro de continentes, mas sim a fusão entre eles. Cada um desses continentes representados são a mistura entre dois mundos (um em baixo maior e outro em cima menor), criando assim formas originais e inesperadas do encontro entre a África e a Asia, por exemplo. Cada um desses ‘Novos Continentes’ simbolizam também os lugares dos eventos (Oi Futuro Ipanema, Fosfobox, Leão Etíope do Méier, etc.), continentes culturais que juntos formam essa utopia que é o Novas Frequências, um festival com artistas de diversos lugares do mundo e que faz parte de uma rede de festivais que trabalham em cooperação e colaboração, como uma Pangea unida”, diz Breno Pineschi.

Para completar, o diretor de arte fala sobre a referência visual que utilizou como ponto de partida para as peças gráficas: “Sobre o jeito de representar esses continentes, a gente se inspirou em plantas de topografia, que são extremamente comuns a essa estética. Qualquer profissional da arquitetura que fez faculdade deve ter construído pelo menos uma dúzia dessas plantas. Elas se encaixam como uma luva no projeto.”

Mais sobre o trabalho da Hardcuore em: www.harcuore.com

O experimental, o Brasil: solista e coro por Gabriel Albuquerque

Lançadas neste ano, as coletâneas America Latina, Entre Ruídos y Ruínas (69 faixas de diferentes artistas selecionadas pelo blog Dissonance From Hell) e Feminoise Latinoamerica (organizada pelo selo Sisters Triangla com 60 artistas sonoras femininas) me incutem a pergunta: até que ponto podemos pensar numa música experimental latina? E, considerando também as compilações Hy Brazil, Sabá Compilation, entre outras, qual o lugar do Brasil neste contexto?

O ponto de partida, acredito, é refletir sobre o experimental não como “A Música Experimental”, um gênero estilístico, fixo e cristalizado. Mas sim como uma prática que está no limiar da tradição e da invenção, constantemente recombinando elementos e inventando possibilidades outras. Dessa forma, a música experimental brasileira contemporânea não se trata exatamente de uma “cena”. Ao contrário, é um agenciamento coletivo, uma constelação de propostas estéticas, poéticas e políticas diversas.

A multiplicidade da produção atual é potencializada pela expansão dos muitos selos de noise, livre improvisação e das diferentes vertentes de música eletrônica – Seminal, Quintavant, Estranhas Ocupações, Domina, Beatwise, Sê-lo, Dama da Noite, Nada Nada, SuburbanaCo, Propósito, Meia-Vida etc. São artistas do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Ceará, Paraíba, Paraná, Goiás, Minas Gerais e Rio Grade do Sul que estão lançando seus álbuns, organizando apresentações, exposições e debates, muitas vezes longe do dinheiro e da cultura oficial. Na abertura da segunda edição do Festival Internacional de Música Experimental (FIME), em São Paulo, Natacha Maurer, artista sonora e produtora do evento, destacava a importância destas movimentações como essencial para a existência do festival.

Mas apesar de toda a sua amplitude e complexidade, as análises sobre a arte sonora nacional quase sempre se fecham na região Sudeste. No livro O Que Faço é Música (2013), Vivian Caccuri propõe mapear artistas visuais brasileiros que trabalham com o sonoro, dos anos 1970 até o momento. Mas encerra-se no eixo Rio-São Paulo, sem citar o trabalho de Paulo Bruscky, Falves Silva, Jota Medeiros ou Unhandeijara Lisboa. Em Onde nasce a música moderna?, extensa reportagem publicada no site da Bravo!, há uma seleção de sons brasileiros que, com exceção do trabalho Henrique Iwao, restringe-se igualmente ao RJ e SP. E isso tudo, respectivamente, é construído sobre a ótica da “desterritorialização” e de uma busca por “inovação”, a perseguição do lugar do qual se originam as “novidades”, o “futuro” – asserções de mentalidade quase mercadológica, como se definindo um estilo de música.

Como todo festival, o Novas Frequências funciona como um painel, um panorama, o que pressupõe um recorte de uma conjuntura maior. Mas a sua programação carrega uma pluralidade significativa. A sensação de que o Brasil, como dizia Paulinho da Viola, não é só isso que se vê – é um pouco mais.

E aí estão trabalhos como o Projeto Mujique, de Fabiano Scodeler, e Zuuum, de Bruno Abdala, compondo diálogos entre tradição e a vanguarda, criando um caminho próprio que reprocessa desde as congadas e a música popular de matriz africana ao techno. As permanências, as memórias, o nascido árido. Soma-se o Moto Perpétuo, de Luísa Puterman, sobre o êxodo, paisagens sonoras, deslocamentos, a sensibilidade em trânsito. O espaço Dissonantes e a sua permanente discussão sobre a visibilidade das mulheres no palco e a inclusão e criação de um espaço seguro para elas no público. A potência catártica e intuitiva do Rakta. Os enfrentamentos políticos que Tantão carrega em si.

Em texto publicado na revista linda, o artista sonoro Sérgio Abdalla observa que a “música de invenção tem a ver com inventar o mundo em volta da música”. A questão não é a música, não é a boa arte, não é ser o disseminador da música moderna, mas sim transformar a vida. Este é o desafio do Novas Frequências e de todos os festivais. Para o Brasil, o início é derrubar os solistas e amplificar o coro, sem regente, mesmo que desafinado. Proliferar as singularidades em meio ao todo.

Dekmantel, Dissonantes e a violência do silêncio das mulheres na música experimental por Amanda Cavalcanti

O anúncio da primeira edição brasileira do festival holandês Dekmantel em 2017 foi boa notícia para os fãs de música eletrônica: com a instabilidade e genericidade de outros festivais do gênero, um evento que traga artistas de uma vertente mais aventurada da dance music é um prato cheio. Mas a divulgação da primeira metade do line up instigou uma discussão mais profunda e extensa no evento do festival no Facebook, que se centralizou numa questão levantada pela produtora paulistana Érica Alves: onde estavam as mulheres brasileiras no line up?

Das dezenove atrações inicialmente divulgadas pelo Dekmantel, quatro são mulheres. Uma sul-americana. Nenhuma brasileira. Os comentários no tópico de Érica seguiram diferentes lógicas para tentar justificar o injustificável desequilíbrio do line up, mas o que mais me chamou atenção foi um parecer bizarramente recorrente: “mas o festival é pra curtir a música, não para protestar”.

Não é preciso explicar porque tal declaração contradiz toda a história da dance music. Desde seu surgimento, a música eletrônica foi elemento fundamental de formação identitária e organização política de grupos negros e LGBT nos Estados Unidos e Europa, em diversos momentos — a música disco de Nova York nos anos 90 e o techno de Detroit nos 80, por exemplo. O mesmo não aconteceu, no entanto, com as mulheres enquanto classe.

O resultado é previsível. Não só no Dekmantel: o Sónar, por exemplo, autoproclamado entusiasta da “música avançada”, em edição reduzida no ano passado escalou apenas uma mulher (a chilena Valesuchi). Mulheres foram e são sistematicamente excluídas de espaços que envolvem música eletrônica ou experimental. Esse desconforto, portanto, passa longe de ser só da Érica, ou só meu — é uma situação experimentada por todas as mulheres que fazem parte desses nichos de alguma forma.

Lembro-me de, numa conversa com a produtora e improvisadora Natacha Maurer, ouvir que ela e a compositora Renata Roman tinham o costume de contar quantas mulheres estavam assistindo e quantas estavam se apresentando em eventos de música experimental. O incômodo as levou a criar o Dissonantes, ciclo mensal de apresentações protagonizadas por mulheres que elas estendem ao Novas Frequências.

O projeto é mais um dos muitos que surgiram nos últimos anos e que tocam na mesma questão, como o ciclo internacional de compositoras Sonora, a mostra de improviso de mulheres XX e o workshop de inclusão feminina na música eletrônica Synth Gênero. As iniciativas realçam a importância das mulheres estarem, também, por trás das cenas. Festivais como o Novas Frequências e o Festival Internacional de Música Experimental, que contam com produção e/ou curadoria femininas, mostram um equilíbrio bem maior que os grandes Sónar e Dekmantel. A mudança, com o perdão do clichê, vem de nós para nós.

No livro A Garota da Banda, a ex-baixista do Sonic Youth Kim Gordon comenta que, enquanto aos homens (os transgressores) é atribuído o papel de pensar fora da caixa e de inovar, às mulheres (as cuidadoras) resta o de zelar pelo mundo como ele é. Portanto, a arte, inerentemente transgressora, não é “coisa de mulher”. Esse dogma se multiplica quando a forma de arte em cheque é a música dita de vanguarda: além do fator artístico, a música eletrônica engloba também o fator tecnológico — duas ferramentas encaradas como tipicamente masculinas.

A dificuldade histórica de inserção das mulheres nesse contexto não impede, obviamente, que a produção feminina de sons de vanguarda seja extensa. Pensando no Brasil de Chiquinha Gonzaga e Jocy de Oliveira, desde o fim do século passado as mulheres vêm trabalhando em expandir a pesquisa sonora experimental. A presença da classe feminina nessas manifestações artísticas não é importante apenas como questão política, mas também pela inserção de subjetividades, olhares, afetos e outros modos de se pensar, fazer e ouvir.

Na k7 cantar sobre os ossos, a artista sonora carioca bella se inspira no mito da Mulher Lobo da poeta Clarissa Pinkola Estés para empilhar 23 faixas de artistas femininas e cantar sobre elas; Carla Boregas e Ana Tokutake, no álbum Travessias do projeto Fronte Violeta, sampleiam um discurso da co-fundadora do movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva. As vozes femininas se multiplicam nesses trabalhos. Não é uma questão de essencializar ou instrumentalizar o que seria um “olhar feminino” ou “abordagem feminina” na composição, e sim pensar linhas de fuga para a hegemonia do masculino, branco e Europeu da música de vanguarda (e da música em geral).

Mas se voltarmos nossos olhos para os festivais, os eventos e a (escassa) cobertura da mídia (mesmo independente e alternativa), os trabalhos dessas mulheres ainda passam despercebidos, esmagados por uma maioria masculina. A questão da presença feminina na música experimental é, também, uma questão historiográfica. As mulheres estão aqui, mas ninguém está contando suas histórias.

Com essa questão em mente eu criei o blog filhas do fogo, uma singela tentativa de buscar ouvir o que essas mulheres têm a dizer sobre suas memórias e seus trabalhos. Por forma de entrevistas e perfis, tento documentar a produção musical experimental feminina em São Paulo. É a forma que encontrei de ajudar essas mulheres a romper com um silêncio de décadas de exclusão.

Em seu álbum III, o Rakta fala de uma “Violência do Silêncio”. A autora e ativista feminista Adrienne Rich escreveu, num exercício metalinguístico do livro de poemas Arts of the Possible: Essays and Conversations, sobre as primeiras questões que devemos perguntar quando lemos um poema: “Que voz está quebrando o silêncio? E que silêncio está sendo quebrado?” Pretendo indagar o mesmo quando estiver assistindo às apresentações femininas no Novas Frequências.