Magnetoceptia – Maria de’ Medici & Maria Stuart

Maria de’ Medici e Maria Stuart é uma tragédia eletromagnética pós-elisabetana baseada na gola real Medici, ou gola Stuart, um elemento de indumentária histórico que funciona como uma “renda audível”, uma antena que capta ondas de rádio de acordo com o espaço em que se está, e faz se ouvir por meio de sons eletrônicos.

Funciona como um um símbolo e um instrumento de regência global do espectro eletromagnético e do objeto sintético de desterritorialização / re-territorialização. A performance pode ser executada em um sem número de espaços indoor e outdoor, e a cada vez resultará em um evento sônico diferente determinado por sinais que estão presentes na locação em questão e moduladas pelos movimentos do portador da peça e pela relação entre ambos os elementos.
O nome refere-se às concorrências econômicas e estéticas, e os conflitos confessionais dos regimes do fim do século XVI na Europa. Estas questões encontraram sua manifestação na guerra da renda dourada, realizada por duas das mais influentes figuras política da monarquia européia.
Maria de Medici e Maria Stuart nunca se encontraram fisicamente no espaço e no tempo, as suas semelhanças permanecem como o máximo poder político e fracasso, o vôo para o exílio e a desnacionalização, a morte na pobreza e a decapitação.
Os símbolos de prosperidade que se revelam acima da cabeça do usuário, como uma extensão física de si mesmo, podem ser desconstruídos como uma mera e funcional antena, o que marca uma virada à uma estética da transparência, em que o valor estético e a revelação da função do aparato é enfatizado.
Portões audíveis para o fenômeno invisível desta situação momentânea são abertos, imergindo o público, não só em um amplo e incalculável espectro sonoro, mas também em uma experiência sinestésica holística e irreproduzível.

 

Magnetoceptia é um projeto colaborativo de Devi de Vree (NL) e Patrizia Ruthensteiner (AT)

https://magnetoceptia.wordpress.com

Release enviado pelas artistas. 2017.

Som da Terra, Sinal da Terra: Energias e Magnitudes da Terra nas Artes.

O rádio era escutado antes mesmo de ser inventado.

O rádio era escutado antes mesmo de ser inventado. Era escutado antes que alguém soubesse que ele existia. Era escutado na primeira tecnologia sem fio: o telefone. O telefone serviu a dois grandes propósitos: foi um instrumento científico usado para investigar a energia ambiental, e foi um dispositivo estético usado para experenciar os sons da natureza. O telefone também iria encontrar sucesso no campo das comunicações. A primeira pessoa a ouvir o rádio foi Thomas Watson, assistente do Alexander Graham Bell. Ele o ligou nas primeiras horas da noite em uma longa linha de metal que serviu como uma antena antes mesmo que as antenas fossem inventadas. Outros usuários do telefone escutaram o rádio por duas décadas antes que Guglielmo Marconi ou qualquer outra pessoa o inventasse. Alguns ouviram música e outros escutaram sons que eram de fora desse mundo. Com o passar do tempo, o rádio fugiu para uma região selvagem, um lugar onde a natureza já havia existido um dia, sendo afastada pela tecnologia, um lugar onde a natureza não podia ser encontrada. Cientistas, soldados e generais ouviram o rádio até 1960, quando músicos, artistas e seus públicos redescobriram o rádio. E agora, quando os “sem fios” antigos encontram os “sem fios” novos, muitas pessoas escutam.

 

Artes Energéticas

A primeira vez que eu encontrei o rádio natural foi enquanto tentava entender composições dos anos 60 do autor americano Alvin Lucier e obras dos anos 90 do artista australiano Joyce Hinterding que, apesar de muito diferentes, tinham o rádio natural como um elemento em comum. O trabalho deles levantou questões específicas, mas também grandes questões que exigiram o repensar da relação entre a cultura e o eletromagnetismo, a história das telecomunicações, a história da música eletrônica e, em última análise, as energias e magnitudes da terra nas artes, abrangendo muitas décadas. A minha tentativa de responder ao trabalho deles começou como um artigo e terminou com esse livro.

(…)

O rádio natural no qual Lucier e Hinterding se engajaram artisticamente na segunda metade do século vinte foi escutado esteticamente por Watson no último quarto do século dezenove. Todos eles foram atraídos a isso pelas suas próprias vocações no som: Watson era um engenheiro de telecomunicações, Lucier um compositor da tradição clássica ocidental, e Hinterding um artista que usa o som. Os três são colocados como indicadores na estrutura desse livro: começando com Watson no último quarto do século dezenove, passando por Lucier nos anos 1960, e terminando com o trabalho recente de Hinterding. Alvin Lucier começou a explorar o eletromagnetismo como um material artístico bruto. Ele não estava sozinho ao sentir que o eletromagnetismo era um material viável para as artes. A música experimental, dada a sua proximidade ao eletrônico e a energia palpável transferida entre som e sinal, foi propícia para o material se tornar imaterial. Essa ideia também podia ser encontrada na arte visual de James Turrel, onde a luz era entendida eletromagneticamente, e na arte conceitual de Robert Barry, que observava a arte visual ocupada por um pequeno remendo (luz visível) do espectro eletromagnético e que o resto do espectro estava aberto para as possibilidades artísticas.

Nos anos 1990, quando Joyce Hinterding começou a se interessar pelo rádio natural, houve desenvolvimentos substanciais do som nas artes, “faça você mesmo” e o hacking de hardware, comunidades amadoras, ciências e as artes, e uma ubiquidade intensificada das comunicações com uma espinha dorsal sem fio. Ela está agora entre um número crescente de artistas, artistas de mídia, e músicos que se movem dentro do espectro eletromagnético e através dos ambientes energéticos tão facilmente tanto quanto essas energias se movem neles.

Apesar da onipresença do eletromagnetismo na natureza, geração elétrica e motores, telecomunicações e mídias eletrônicas, física, e assim por diante, houve muito poucos escritos sobre tais fenômenos nas histórias e nas teorias das artes. Não faz muito tempo que essa mesma condição pertenceu a outra grande energia: o som. Existem similaridades: o jeito como o eletromagnetismo tem recebido atenção entre praticantes na última década se assemelha a forma como praticantes engajaram o “som” nos anos 1980. Na verdade, algumas das mesmas pessoas estão envolvidas.

A exceção à escassez de bolsas de estudo está o trabalho de Linda Henderson “Em Contexto, um tratamento meticuloso da ciência, tecnologia e do oculto nas artes visuais e antiretinais”. O presente esforço pode ser lido como uma extensão do capítulo oito desse livro  – “O grande vidro como uma pintura de frequência eletromagnética”  – enquanto eu adiciono questões da incursão cultural do eletromagnetismo e sua relação com os meios de comunicação e durante diferentes períodos nas artes e na música.

Alguns dos sons naturais que Watson e outros escutaram no telefone foram percebidos como musicais, especialmente os curtos e deslizantes sons e assobios. De fato, o termo “atmosfera musical: mais tarde se torna comum nos alojamentos científicos, e pesquisadores no inícios dos anos 1930 descreviam atmosferas ao longo de um contínuo musical, quase musical e não musical. Na vanguarda artística e musical, o meio termo foi negociado inicialmente em termos de acomodação de barulho, primeiramente formalizado no manifesto futurista do italiano Luigi Russolo (“Arte dos Ruídos”, de 1913) e ecoou no chamado de John Cage “Por Mais Novos Sons”, de 1942. Durante os anos 1920 e 1930, a ciência do assobio e da vanguarda musical compartilhou tolerâncias parecidas e predileções pela plasticidade do que eram e do que não eram sons musicais; e pode ser dito que Watson também era um ouvinte dos tipos de ruídos e sons estranhos que seriam passíveis para a vanguarda quatro décadas depois.

 

Trecho de Earth Sound Earth Signal: Energies And Earth Magnitudes In The Arts. 2014. Douglas Kahn. University of California Press.

“Música deve ser política”: uma entrevista com Aïsha Devi

Seu álbum Hakken Dub/Throat Dub é gutural e xamânico. Na tradição oriental, a música é conectada com a espiritualidade.

A música faz parte do mundo espiritual e tem uma grande influência na cura e no bem-estar. Pois é tudo sobre frequências…Cada tom da voz causa um impacto diferente no corpo.

 

Você teve formação vocal. É difícil transitar entre os diferentes modos do canto, de um canto mais meditativo ao “clássico modo” ocidental? Você pesquisa estas diferentes técnicas?

Quando se faz música, você está constantemente aprendendo. Não é possível dizer a si mesmo ‘Agora estou completa’. Durante vinte anos fui treinada no método europeu com a técnica soprano, que já é baseada na respiração, porém centrada no controle da sua voz. É uma técnica muito exigente. A voz na ópera possui muitas regras, então você está sempre cantando como se estivesse restrito à uma caixa. Eu cantava deste jeito e tentava colocar isso na minha música, mas quanto mais eu fazia musica, mais eu precisava explodir essas restrições. Eu sabia como cantar como uma soprano e cantei em muitos corais peças de clássicos como Mozart e Beethoven. Então percebi que eu realmente precisava quebrar essas regras. Quanto mais eu experimentava com a minha voz, melhor eu me sentia. Mesmo cinco anos atrás eu usava minha voz como um instrumento que se esticava, que se quebrava. Eu não considerava a minha voz como algo sagrado. Eu realmente gosto da ideia de “quebrar” a minha voz, e de quebrar as regras da voz. Desde de que comecei a meditar, cinco ou seis anos atrás, sinto com se algo tivesse se aberto em meu cérebro, e não há caminho de volta.

Eu cantava mantras e fazia ‘zumbidos’ com frequência. Quanto mais mantras eu fazia desta maneira, mais o cérebro se colocava em outra vibração. Não é esotérico, é puramente matemático e neurobiológico. Cada vez menos eu consigo cantar do ‘modo europeu’. É também uma questão de harmonização. Ravi Shankar explicou isso muito bem. Na Europa temos as escalas de quintas, sétimas, temos harmonias especificas. Mas na Índia ou no Oriente, a escala é totalmente diferente. E a partir deste ponto de vista a escala é mais conectada à uma viagem cerebral extraordinária. Isso significa que seu cérebro não está sendo restringido por uma escala, e pode escapar, viajar e se conectar com a natureza e seus elementos. É uma jornada fantástica, estou aprendendo todos os dias.

 

Você também escolheu seu nome cívico como o nome deste projeto. Isso se relaciona com a busca por suas raízes e identidade? 

Cada músico tem a sua própria jornada. Para mim, a música é como um iniciador. É como viajar e ir tentando encontrar a verdade e o conforto na vida. Quando se é músico, ou artista, há algo que não vai muito bem no seu mundo. Eu tive o impulso de me expressar musicalmente. Eu me virei em direção a esta cultura, também fazendo muita meditação quando viajei à India, já que não conheço meu pai. Ele é indiano-nepalês com raízes tibetanas e de Burma (Mianmar) e agora comecei a procurar por ele. Talvez ele não esteja mais vivo. Esta busca pela minha própria identidade correspondia com as mudanças em mim mesma e na minha música. Tudo me dizia para ser a mim mesma, ser o meu próprio filtro para este mundo, pegar o meu nome de volta e recomeçar nua. Ao mesmo tempo, a identidade não é tão importante. É um alibi fantástico para descobrir esta cultura e esta parte que está em mim, mas eu nunca me sentirei confortável neste mundo, de qualquer jeito. Isto não é baseado em descobrir quem se é, é muito mais sobre perceber quem somos como um coletivo humano e retornarmos aos nossos rituais.

 

Isto é interessante, que por um lado você tem esta faceta espiritual, com suas raízes orientais, porém por outro lado, seu avô era um físico na Suíça. Sua história me parece fascinante. 

É apenas uma família disfuncional, como qualquer outra família. Eu cresci com a minha avó, então viajei muito com ela quando era criança. Ela faleceu há 3 meses atrás. Há muito sobre ela no meu próximo álbum. São muitos sentimentos diferentes que são fruto daquela infância isolada. Visitar muitos países abriu a minha cabeça naquela idade. Aquela solidão me encorajou a ter esses diversos mundo imaginários na minha cabeça. Minha mãe era uma hippie, minha meia irmã é jamaicana. De certa maneira, é como ter o mundo inteiro na família, o que é fantástico porque significa que não existe apenas uma perspectiva, mas centenas delas. É isto que estou aplicando na minha vida e na minha música. Todo mundo tem uma perspectiva diferente e a ideia é não julgar esta outra perspectiva, mas tentar trazê-las todas juntas. Meu avô era físico, mas ele sempre teve um grande interesse pelas artes e era amigo de Carl Gustav Jung. Ele era uma pessoa muito espiritual. A maioria dos físicos são pessoas incríveis, são apaixonados pelo mundo e pelo cosmos. São, talvez, os primeiros a entender que o cosmos é apenas uma coisa relativa e que vivemos uma ilusão visual, tudo pode ser transformado em outra coisa. É muito interessante contar com a física e tentar entender o mundo por uma perspectiva física. Não é tão distante assim dos textos escritos em 2.000 a.c. em Veda. A Metafísica é muito importante para mim.

 

Então você também segue os últimos desenvolvimentos do CERN? O nosso futuro é uma preocupação?

Na verdade estou cheia de esperança. Acho que vai ser um momento fantástico. Eu moro muito perto do CERN. Meu avô também trabalhou lá. Eles sabem muitas coisas sobre anti-matéria e coisas que os europeus não querem muito saber. Não é bom para o capitalismo, mas isso chegará.

 

Trecho da entrevista de Aisha Devi para o site da SHAPE Platform. 09/06/2015

http://shapeplatform.eu/2015/aishadeviinterview/

Espiral

“O som não possui face oculta, ele é todo adiante detrás e fora dentro, sentido de ponta-cabeça com relação à lógica mais geral da presença como aparecimento, como fenomenalidade ou como manifestação, e, assim, como face visível de uma presença em si subsistente. (…) Escutar significa entrar nessa espacialidade pela qual, ao mesmo tempo, eu sou penetrado: porque ela se abre em mim bem como ao redor de mim, e de mim assim como em direção a mim: ela me abre em mim tanto quanto ao fora, e é por uma tal dupla, quádrupla ou sêxtupla abertura que um “si” pode ter lugar.”[1]

Flutua, ecoa, passa, se transforma… Cria-se a partir dos elementos existentes no espaço e é criador de comportamentos e ritmos locais. Sendo onipresente, o som preenche todos os ambientes: interno e externo, natural, urbano ou rural.

As paisagens acústicas são compostas essencialmente por três elementos: a biofonia, geofonia e antropofonia [2]. Cada um, respectivamente, representa os sons emitidos por qualquer animal, sons físicos da natureza, como trovões, chuva, vento etc. e sons produzidos por seres humanos. Juntos ou separados, estes são capazes de refletir todos os processos e relações sociais e naturais que ocorrem no espaço-tempo.

Ciclos sazonais, diurnos, noturnos, lunares, padrões ou marcos sonoros naturais ou criados, estabelecem um ritmo e modo de vida aos animais e humanos e se apresentam de diferentes formas em cada paisagem.

Em Istambul, por exemplo, todos os dias, por cinco vezes ao dia a cidade é preenchida pela leitura do alcorão (livro sagrado do islã) feita ao vivo dentro de cada mesquita, presente no local, e projetada para a população através de alto-falantes instalados nas torres de cada uma delas. Este padrão sonoro tem como objetivo convidar os fiéis à oração, estabelecendo assim um comportamento diário e uma paisagem acústica característica.

Já em locais onde a antropofonia tem menor ou nenhuma interferência no ambiente sonoro, os ciclos naturais, elementos orgânicos e físicos, criam acústicas específicas para cada local e tempo. Neste tempo natural, os modos de vida da fauna presente são influenciados diretamente separando os corais matutino, diurno, vespertino e noturno de mamíferos, aves e anfíbios.

Na aldeia indígena Kayapó, situada numa área da floresta Amazônica ainda pouca alterada pelas atividades humanas, é possível perceber claramente as diferenças acústicas nas transições da noite para o alvorecer, do alvorecer para o entardecer, e assim por diante. Ao se escutar o primeiro pássaro (por volta das 4h da manhã), os sapos se silenciam e só retornam ao anoitecer, quando o canto dos pássaros começa a se extinguir novamente.

A comunicação acústica dos animais é essencial e serve para proteger a si mesmos, aos seus territórios, se reproduzirem e se alimentarem. Desta forma, uma nova linha de pesquisa chamada

“ecologia da paisagem sonora” surge para estudar os processos e interações sonoras de todos os seres, na escala espacial e temporal. Este ramo da ciência nos fornece informações sobre a saúde do habitat, auxilia o direcionamento para estratégias de conservação e favorece a identificação e preservação de espécies, entre outras abordagens.

No livro A grande orquestra da natureza, do músico e naturalista Bernie Krause, diversas experiências sonoras vividas pelo autor são relatadas e princípios da ecologia da paisagem sonora são abordados para alertar sobre os impactos das atividades humanas no ambiente. O que ele tem percebido, principalmente, é que ao analisar um gráfico sonoro de um habitat saudável é possível distinguir as vocalizações de cada animal e identificar padrões de comportamento. Já em biomas danificados, ameaçados ou alterados, as biofonias perdem a densidade, diversidade, se desarticulam e se tornam caóticos, podendo levar anos até que as vocalizações se reconstituem novamente. Assim a ecologia da paisagem sonora vai além da abstração das vozes de indivíduos isolados, mas sim analisa o espaço em sua totalidade considerando toda a comunidade acústica, suas interações e transformações.

Sobre essa totalidade, o trio Luisa Lemgruber, Gabriela Mureb e Sanannda Acácia criam um ambiente que se utiliza de diversos elementos naturais, biológicos e não biológicos para uma condução entre estados e intensidades sensoriais, explorando os limites da paisagem.

 

Referências

 

[1] Jean-Luc Nancy. À escuta. 2014

[2] Bernie Krause. A grande orquestra da natureza: Descobrindo as origens da música no mundo selvagem. 2013

 

Luisa Lemgruber é artista sonora, geógrafa e atração do Festival Novas Frequências ao lado de Gabriela Mureb e Sanannda Acácia.

Esperando Otomo

No começo desse ano eu sonhei que tocava uma viola-de-cocho preparada em uma improvisação com o músico japonês Otomo Yoshihide, que por sua vez tocava um shamisen elétrico. O shamisen elétrico aparecia nesse sonho como um ente-instrumento, talvez alguma associação do meu inconsciente à tradição musical de origem de Yoshihide e à própria guitarra elétrica, instrumento com o qual vinculo a imagem do músico japonês desde que comecei a escutar sua música. Esse sonho me fez pensar que muitas vezes o sonhar com música talvez seja uma livre improvisação da nossa consciência, assim como a própria música improvisada é um sonho daquilo que a gente chama de música, ou desse acúmulo de consciências e vivências sonoras ao longo de um percurso de escutas, leituras e experiências com o som. E nessa instantaneidade improvisacional onírica, se compunha um lugar-emaranhado de irradiações, num fluxo, gestual, texturial, sonoro, ruidístico, operado pela relação entre dois ente-instrumentos na construção poética e política de um espaço sonoro.

Esse sonho ocorreu dentro de um contexto de espera da confirmação da vinda de Otomo Yoshihide pela primeira vez ao Brasil. Talvez um tempo de latência musical em que o silêncio se adensa à espera do gesto que deflagra o primeiro som, o tempo de espera que antecede a improvisação. Durante dois anos mantive em minha casa uma prática de diária de improvisação, num gesto cotidiano de registro em forma de diário. Após um dia de práticas ordinárias, cotidianas, me centrava para fazer uma improvisação e seu registro. A cada dia que se passava eu percebia que esperava esse momento do dia chegar, ao ponto de algumas vezes sonhar com a improvisação que viria. E de alguma forma, percebia dia após dia, que a improvisação se impregnava das coisas que eu vivia, escutava, pensava, acumulava, ainda que eu buscasse um esvaziamento consciente pra viver o instante da improvisação. E é sobre essa espera e sobre o que esperar da vinda de Otomo que eu também gostaria de falar aqui.

Considerado o espectro amplo e variado de sua produção, desde os anos de 1980 até hoje, Otomo pode ser considerado um músico que escapa a quaisquer tentativas de associação a uma única corrente musical: do jazz ao noise, do rock às performances com os turntables, da improvisação à instalação sonora e ainda com uma intensa produção de trilhas sonoras para cinema e TV. Ele prefere definir-se apenas como um músico que se limita a fazer sua arte, seguindo suas temáticas e interesses, ainda que aos outros possa parecer incoerente ou contraditório. Entretanto, se definir seu trabalho a um limite estilístico é algo quase impossível, o reconhecimento da originalidade e grandeza de seus trabalhos é incontornável. Álbuns como Consume red e Playing Stardards (com o grupo Ground Zero) ou o memorável tributo a Eric Dolphy em Out to lunch (com a OYNO); isso sem falar nos outros projetos em grupos, ou diferentes parcerias improvisacionais; sem contar também com os álbuns Cathode (1999) e Anode (2001), que foram os que me introduziram ao seu universo criativo; deixam evidente uma poética que entrelaça essa complexa teia de trabalhos distintos, a improvisação.

Otomo opera, pensa e cria como um improvisador que tem uma pulsão de busca e se lança ao inesperado sempre. Talvez por isso esteja aberto a trabalhar com diferentes músicos e a propor descentralizar os projetos que contam com grandes formações. Sua postura é de se colocar nesses desafios como um barqueiro diante das forças da natureza, saber interagir com a força do mar e do vento para, a partir dela, conduzir sua própria trajetória. Entrar na onda e ao mesmo tempo ser parte constitutiva dela me parece uma imagem muito pertinente à sensação que tenho ao improvisar com outras pessoas. O instrumento, qualquer que seja a sua natureza, torna-se o veículo dessa ação de se adentrar nesse mar.

Suas improvisações solo, tanto com a guitarra elétrica, quanto com as vitrolas, me transportam de volta ao sonho inicial, o shamisen elétrico. Ali consigo escutar algo de tradicional ligado à música japonesa. Não uma tradição milenar, mas uma tradição que o próprio Otomo cita como sua grande primeira influência, o gesto improvisacional de Masayuki Takayanagi, guitarrista japonês pioneiro no free jazz. Ou talvez ainda mais do que isso: Takayanagi, juntamente com o saxofonista Kaoru Abe, levou o free jazz ao limite e às portas de entrada da noise music. A imagem em sonho desse instrumento híbrido, talvez seja a representação do que o prório Otomo chama de tradição musical quando se refere a esses dois músicos.

Certo é que a espera que antecede a improvisação é fundamental. O silêncio dessa espera é a escuta do som antes que o som se faça como fenômeno acústico no instante. E o sonho, nesse caso, é a improvisação da consciência de um ouvinte desse mar profundo e diverso que é a música de Otomo Yoshihide.

Marco Scarassatti, Artista sonoro e professor da UFMG.