“Acredito que o uso dos ruídos (noise) para fazer música continuará e aumentará até alcançarmos uma música produzida com a ajuda de instrumentos elétricos, que disponibilizará para fins musicais quaisquer sons que podem ser ouvidos.”
(John Cage, “The Future of Music: Credo”, in Silence).
O conteúdo premonitório desta frase resume o credo de artistas que, durante o século XX, expandiram a paleta do discurso musical. As experiências de Russolo, Stockhausen, Xenakis, Schaeffer, e do próprio Cage, incorporaram ruídos, sons de máquina, ambiências urbanas, sons inauditos (produzidos por sintetizadores), e até mesmo o silêncio às composições. Extrapolando o sustentáculo da música ocidental – a tríade harmonia-ritmo-melodia –, estes artistas tiveram influencia decisiva sobre a acidentada geografia sonora do século XXI.
Cabe a cada um perguntar a si mesmo: quem se admira hoje com som da guitarra distorcida, outrora vista como uma ressonância alienígena da dominação cultural norte-americana? Quando tomei conhecimento da música eletroacústica e, mais tarde, do noise, fiquei indignado, pois permanecia resguardado na perspectiva confortável da música que me soava familiar. Por que haveria de explorar “a borda”, os limites não só da música, mas do próprio som? Duro aprendizado, o de aprender a receber, interpretar, e até mesmo ter prazer com “quaisquer sons que podem ser ouvidos”…
A relevância do Festival Novas Frequências não é propriamente a de uma amostragem pedagógica, mas, sobretudo, da consolidação de um interesse. Hoje, um número relevante de pessoas sabe que a música não se restringe ao poder inebriante da canção, mas que pode ser elaborada a partir de muitas técnicas, gêneros e procedimentos, soando de muitas maneiras, a partir de interferências diretas na forma como é gravada, executada e reproduzida. Que a música, enfim, explora a materialidade do som, ainda que eventualmente incorporada a gêneros reconhecidos, como o synthpop e o rock psicodélico.
Para conferir uma parcela destes esforços, basta dar ouvidos à produção multifacetada de Cameron Stallones, mais conhecido como Sun Araw; ao dubtechno esfumaçado de Andy Stott; à frieza do balanço sci-fi de Com Truise; às intrincadas texturas eletrônicas criadas pelo mexicano Fernando Corona, que assina como Murcof; e ao ambient/drone turbinado de Mark McGuire, prolífico guitarrista americano, apaixonado pelos sintetizadores alemães dos anos 70. Artistas que dialogam abertamente com o passado, para os quais, porém, o passado não se afigura como um grilhão, mas como lenha para queimar, transfigurar e levar a música adiante…
Bernardo Oliveira é professor de filosofia e crítico de música