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“Universo em expansão”, de Felipe Vaz

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A qual nicho específico atende o Novas Frequências, reunindo improvisação livre, sons eletrônicos e experimentais, noise, subgêneros do techno e do ambient, arte sonora e por aí vai? Como encaixar este leque em nosso modelo mental de festival de música, que normalmente atende uma, ou apenas algumas estreitas vertentes da produção musical? Independente de gêneros e estilos, ao recapitular a história do festival, podemos organizar o que ele nos trouxe até aqui em torno de duas grandes linhas que não se excluem mutuamente, e que serão possivelmente mais úteis que gavetas de estilos.

A primeira podemos ligar a uma ideia do crítico de música e arte alemão Diedrich Diederichsen (da lendária Spex), e está presente desde a primeira edição. Ao tratar da arte contemporânea, ele aponta que não interessa mais hoje o ataque ou o questionamento às instituições (tão comum no sistema das artes visuais desde os 1970), e sim a criticalidade do trabalho. Com isso, se refere àqueles artistas que, através de um cuidado crítico em relação a sua própria produção, levam o conhecimento humano a um novo ponto, até então desconhecido: a própria geração do novo, por expansão ou por aprofundamento de seu campo de problemas. É um correlato do modus operandi da ciência, onde cada pesquisa em um nicho estreito estabelece um avanço muito localizado no perímetro do campo mais amplo do saber sobre o mundo, expandindo o conhecimento humano como um todo. Na música, isso corresponde àqueles que criam novas formas sonoras ou são mais detalhistas do que seus antecessores, que empurram para mais além as fronteiras que antes conhecíamos na produção da música – nos confrontam com uma música que antes não poderíamos imaginar, por mais que hoje qualquer som possa ser admitido como música. É o alargamento das bordas do campo do sonoro, de tudo o que se pode escutar.

Já a segunda linha seria a de uma arte sônica “não-coclear”, conforme formulada pelo pesquisador e artista sonoro Seth Kim-Cohen. A ela corresponde um transbordamento do som, à explosão do próprio limite do sonoro. O termo joga com a “arte não-retiniana” imaginada por Duchamp: se por um lado as artes visuais desde o final da década de 1960 deslocaram para o segundo plano a própria visualidade para privilegiar a produção de conceitos, no campo da música e do sonoro isso não ocorreu. Isso não quer dizer que não haja música conceitual, e nem que não houve músicos que privilegiaram o pensamento, mas que os aspectos conceituais não ocuparam, na música, o espaço que ganharam nas artes visuais.

Podemos partir do que não é arte não-coclear para explicá-la. Pierre Schaeffer, pai da musique concrète, pensa, promove e cria a possibilidade de uma enorme expansão do campo sonoro, incorporando todo tipo de som ainda na metade do século passado. Em seu método de composição, parte da possibilidade tecnológica do registro de sons para separá-los do mundo e usá-los como matéria-prima disponível para a composição. Para chegar a tal, para permitir a apreciação do “objeto sonoro”, unidade fundamental de sua linguagem e seu pensamento musical, Schaeffer propõe uma escuta reduzida, baseada na remoção de toda e qualquer referencialidade externa do som: este deve ser reproduzido por alto-falantes, isolado de qualquer estímulo visual ou outra referência. Esta reprodução não deve lembrar, ao ouvinte, o instrumento ou a situação que produziu o som na vida real, apenas deve apresentar a experiência auditiva descolada de um referente – a característica fundamental do objeto sonoro é a de um som idealmente “puro”, afastado de qualquer relação com o mundo externo. Ele é registrado e controlado, asséptico, disponibilizado em uma vitrine no qual se conjuga exclusivamente com outros sons equivalentemente isolados do mundo. Nesta medida, Schaeffer configura, a despeito de aumentar enormemente o vocabulário musical, o oposto de uma arte sônica não-coclear: direciona a atenção exclusivamente à percepção auditiva, e exclui todo o mais.

Ainda sob esta ótica, John Cage configuraria um ponto de inflexão, dado que sua contribuição pode ser lida de duas formas divergentes. Por um lado, como Schaeffer, expande a paleta incorporando todo tipo de som à música – e o mítico 4’33’’ é frequentemente tomado como exemplo disso. Mas é possível interpretar a mesmo peça por outra chave, sem excluir a primeira. Cage também aponta, ali, para tudo que NÃO é o próprio som: a partitura, o piano, o pianista, a sala de concerto, o público, as cadeiras, o pigarro do espectador… em resumo, para todo o dispositivo, para o quadro da situação em que se produz a experiência da música. Não por acaso, a influência de Cage é apontada frequentemente como sendo seminal para o caminho conceitual trilhado pelas artes visuais nos últimos 50 anos.

Uma ilustração da experiência não-coclear é o vídeo Guitar Drag (2000), de Christian Marclay. Nele, uma guitarra é amarrada a uma camionete com um amplificador em sua caçamba. Arrastada por quilômetros pelo Texas, a guitarra é pouco a pouco destruída, produzindo uma enorme variedade de sons distorcidos pelo caminho. O som em si é interessante, mas o processo empregado na geração do som é mais relevante. Quando, no entanto, nos deparamos com a informação de que, meses antes do registro do vídeo, uma pessoa fora arrastada até a morte por uma camionete naquelas mesmas estradas por questões de racismo, o som é atropelado e potencializado por camadas de significado muito mais urgentes.

De diferentes formas, este “apontar para fora do som” é o que fazem Tunga, Quiet Ensemble, Marco Scarassatti, Interspecifics Ensemble, Pierre Bastien, Philip Jeck, Aki Onda, Vivian Caccuri e o Chelpa Ferro. Em diferentes medidas, apresentam sons, mas ao contrário do som puro, é o som contaminado, indissociável das condições que determinam sua produção ou sua recepção – algumas vezes, importará mais o lugar no mundo para onde aquele som aponta do que a própria audição, puramente coclear, do som.

O universo das sonoridades não pára, segue em constante e acelerado crescimento. Que venham a nós mais frequências e ideias que permitam escutar esta expansão, sejam elas alargadoras do campo do sonoro, ou estabelecedoras de novas relações com as dimensões da experiência que estão além do som.