Um dos maiores e mais violentos legados da colonização, seja em qualquer parte do mundo antigo ou moderno, é a desfamiliarização da língua materna entre os descendentes dos povos que ali se encontravam. Como o nosso português demonstra, a erradicação das línguas indígenas não chega a acontecer por completo, mas eventualmente elas acabam se tornando apenas um ruído do passado. Mas DJs, produtores e selos espalhados por todo o globo tem resgatado esses ruídos para criar novas semânticas e vocabulários para compreender, ou até mesmo escapar, da máquina capitalista e corporativista na qual a sociedade ocidental se transformou. E nenhum outro produtor ou produtora faz isso melhor do que a americana Elysia Crampton.
Drama, efeitos sonoros extraídos de blockbusters, ativismo transgênero, e temas latinos como reggaeton, baile funk e cumbia são os pilares de suas produções, que muitas vezes fogem à clássica forma da música club ou comercial para pintar um poema sonoro composto, na maioria das vezes, por mais sombras do que luz e cores. Erudito e popular, físico e espiritual, novo e velho se fundem e se transformam ao ritmo da própria Elysia, que durante sua jornada musical já assumiu diferentes personas como E+E e/ou DJ Hocelote.
No entanto, tais artifícios e emergências não são exclusivas dela, já que se encontram dentro de um grande movimento global que também reivindica essas novas composições electro-quixotescas como política e expressão de ser diante deste novo mundo fraturado e hipertecnológico: na Europa e em festas como a Janus (Berlim), Arca e Lotic sonorizam a experiência da vida como trauma; a fusão dos tambores orgânicos do candombe aos sintéticos pads de Lechuga Zafiro e Pobvio na Salviatek (Montevidéu); a redescoberta da identidade mexicana pelos N.A.A.F.I.; o refúgio negro e latino nos ballrooms da Qween Beat, e a agressividade expressiva dos membros da KUNQ, em NY.
Independente da distância geográfica ou social que separam esses artistas, a principal força que os une é a constante abertura à colaborações. Novas possibilidades de relacionamentos humanos são construídas lado a lado com uma crítica dura de como a tecnologia pode influenciar a nossa percepção de tempo e espaço. Criada por Chino Amobi, Nkisi e Angel-Ho, a NON Records não apenas questiona esse novo lugar de interação, como também vem criar uma hiper-nação. Todos os seus cidadãos, em geral africanos e/ou da diáspora, tem voz e abertura para falar, criar, reconstruir. Em seus projetos ambiciosos, lojas de duty free são transformadas em espaços de escuta e resistência, o aeroporto como o ponto interseccional entre todos esses povos.
Assegurar um espaço onde todas essas vozes possam soar livremente é um dos maiores desafios da cena. Ignorados pelo circuito mainstream de clubes e festivais por serem muito estranhos, ou muito popular, o que sobra são as sombras e lugares de resistência. Bares queers e punks, galpões abandonados, centros comunitários, ocupações ou até a própria rua. Os artistas criam novas direções e possibilidades para que pessoas, cidades e sons percebam-se como potências transformadoras de seu próprio destino.
Apesar dessa sonoridade ainda ser pouco explorada no Brasil, a atual corrente de pensamento “kuir” oferece similar carga política e descolonizadora não só para a música, mas para todas as artes performáticas. Talvez os maiores expoentes da cena, artistas como Monstra Erratik e Solange, tô aberta!, trazem em suas músicas, textos e performances, a reconstrução e reapropriação da teoria queer norte-americana para a realidade da bixa latino-americana. A bixa pão-com-ovo, afetada, hiperfeminilizada, negra, indígena, favelada, nordestina, que aqui ressurge da marginalidade para ser o maior símbolo de resistência e sobrevivência, a última fronteira desse caldeirão de identidades nem tão pacífico como se acredita que é o Brasil. São ruídos de vivências e descendências que sofrem para existir todos os dias. Ruídos que, ao final, sempre existirão para assombrar e se posicionar como a única língua possível.