O silêncio é o maior dos pulsos, onda intangível, longínqua e antiga como o tempo estendido daqui para além, lá trás, no era da explosão cósmica que gerou este universo e as condições de pressão atmosférica propícias para a manifestação do ar, da luz e do som tal como experienciamos diariamente.
Dentro dos limites de nossa percepção convencionamos conceituar o silêncio como intervalo, repouso ou inação, no entanto, se nos libertarmos da chave especista com a qual fabricamos verdades, submetidas a régua humana de medição dos fenômenos, poderemos dialogar com os movimentos da vida gerados abaixo dos 20hz ou acima de 20.000 hz que limitam nossa capacidade de audição e apreciação da realidade acústica, e por extensão, nos reduz a possibilidade de significar as coisas.
Permanecem vivas sob a guarda dos mágicos, dos loucos, artistas e cientistas as tradições que revelam mistério vindos de freqüências inaudíveis para o ouvido pouco treinado.
Todo pulso responde a um im-pulso maior que o movimenta. Acredito que o silêncio seja o pulso maior que vagarosa e incansavelmente estimula outros im-pulsos mais curtos, jovens e ruidosos. O beat inaudível que conhecemos como silêncio é o impulso dos sons que conseguimos identificar e nomear, o drone galáctico onde segreda todo barulho já criado pela natureza, todo o som do por vir, a freqüência da origem, caminho do coração, centro da calma.
Nos livros vêdicos encontramos o Om / Aun, silaba evocativa da totalidade energética do universo, da freqüência única manifesta em tudo o que provêm dos 5 elementos primordiais. Sua evocação é a ante sala de embarque para o drone atemporal do silêncio, fenômeno, estado de consciência a partir do qual relativizamos nossa existência de modo a desaguá-la no amplo fluxo de movimentação do cosmos, sem apego ou aversão, amoral, contemplativa, meditativa1.
Permanecem incógnitas as qualidades das freqüências que nos escapam os limites sensíveis da audição e do tato. Fato é que, a história nos traz incontáveis práticas e registros de grupos que, ao longo dos tempos, construíram senso de unidade em torno das propriedades efêmeras da sonosfera inescapável que nos dá contorno. Talvez o silêncio seja o próprio ar, o gás condutor de onde brota o som e a musica, não a toa ouvir e respirar guardam parentescos parassimpáticos, mais adiante, respirar é meditar, estar com o todo, pulsar, viver, ser permeável, ressonante, consoante.
Certa vez encontrei em um livro sobre ayurveda uma idéia que dizia: “cães vivem pouco, pois respiram rápido demais”.
O canto, Ícaro, mantra, a voz diafonica, a percussão de cordas e peles, o sopro das madeiras e metais, as distorções elétricas em altos volumes, a organização métrica e harmônica de naipes disciplinados em uma sala de concerto, todos, são esforços humanos nos sentido de tocar aquilo que nos transcende, o ar e a luz, o diapasão do mundo, a suspensão , o drone cósmico, mais uma vez…shhhhhhh!!! Silêncio, escute!
Mas o drone não é uma exclusividade do silêncio. Poderíamos cruzar a África, Ásia, as Américas em busca de sons organizados para induzir a conexão com o todo e encontraríamos uma variedade de organizações sonoras, do corpo e da matéria, capazes de nos varar em estado de plenitude e graça. Por outro lado, a eletricidade, os pedais de distorção, os amplicadores, sub woofers, sequencers, osciladores de freqüências e sintetizadores nos oferecem outra infinidade de possibilidades para a experiência acústica e sensibilização do corpo para a recepção dos mais variados estados de transe.
Acredito que a busca pelo estado de transe corresponda ao desejo de transpor a visão comum vivenciada no cotidiano. Nesta empreitada a musica é a prótese etérea que nos auxilia a romper com o tempo linear da produtividade, do consumo, do acumulo, da dualidade, dos vícios utilitaristas impregnados no corpo e na mente. Há quem viceje daí definir o ócio, prefiro desenhar, deste ponto, um início para processos de auto percepção por meio da introspecção.
Dentre os procedimentos da Vipassana2as pessoa dedicadas ao estudo da meditação recebem a orientação de não utilizar quaisquer recursos externos ao próprio corpo durante a prática meditativa. Os ensinamentos de mestre Goenka3apresentam o corpo humano como realidade bastante ou corpo suficiente, um todo que, embora influído pelo meio, se treinado torna-se o seu próprio regulador, diante das enfermidades, tormentos e mazelas da vida.
Embora eu tenha conseguido atestar durante os 10 dias de treino (vipassana) silencioso os poderes da consciência interessada, não nego a importância que a musica teve no desenvolvimento de meu senso de introspecção, preservação e conexão com a vida.
Minha primeira meditação foi uma experiência de torpor diante de falantes que me preenchiam com os sons de guitarras distorcidas, que evoluíram kicks contínuos seqüenciados, para então dar lugar a sintetizadores molhados de reverberação nostálgica , mantras hindustani, ícaros andinos, drones de berberes do sahel, o samba marcado de histórias que narram também minha história, a bass music, mais sintetizadores, um luar de acampamento, uma pedalada, um banho de sol, shhhhh!!! Silêncio.
É difícil determinar um marcador que assinale a qualidade de uma prática meditativa. São tantas as sugestões e guianças que é bem possível afirmar a existência de distintos exercícios de introspecção para pessoas de humores diversos, assim, a musica é um caminho rico para a o exercícios de auto conhecimento, visto que sua propriedade efêmera já nos coloca em contato com a impermanencia das coisas, com o fim e a partida de uma entidade a cada termino de canção.
Aprendamos a acolher o mais expressivo dos drones.
1Chamo foco de atenção para uma percepção, pessoal, de que é preciso cautela quando nos propomos práticas de relativização de nossa condição humana, da vida quando observada sob a ótica das filosofias orientais. Na meditação escapamos ao juízo de valor não para que nos isentemos de nossa parte com o todo, mas para que conheçamos os caminhos do pensamento indômito e viciado os limites da cultura, para que ganhemos ciência e retornemos a vida cotidiana com o olhar desperto, intencional e ético.
Ao lançar este sinal postulo contra a capitalização da yoga, da meditação , da ayhauasca , na contra mão do impulso movido pela branquitude no sentido de inserir tais práticas e rituais dentro de contextos sofisticadamente neo liberais, em que o senso de individualidade é hiper estimulado em detrimento da coletividade.