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Refundar o tempo – GG Albuquerque

A arte não é um espelho da vida. É célebre a frase do pintor Paul Klee, segundo a qual a arte “não é uma reprodução do visível, ela torna visível”. Após variadas transformações gramaticais e reconfigurações de dispositivos técnicos desenvolvidas ao longo do século XX — o dodecafonismo e o atonalismo, a música concreta, eletrônica e eletroacústica, o bop, a improvisação livre, o minimalismo, as táticas de indeterminação e acaso, os fluxos de consciência, as colagens plunderphonics,entre outros procedimentos —, a música também indicou a própria ruptura com os aspectos figurativos, descolou-se da dimensão do “real”. Uma música que, em vez de “representar”, propõe, sobretudo, intensificar as zonas do real num contínuo de experimentações em que objeto e sujeito tornam-se potências entrelaçadas e indistintas. A música vibra em torno do inominável, tornando audíveis as forças não-audíveis, como os devires do tempo, o espaço, as cores, a gravidade — Oliver Messiaen chegou a propor ver a cor do tempo em “Chronochromie” (1960).

Sendo a música essa expressão deslizante, viva e processual, como pensar o negro dentro de um panorama artístico em constante movência? Ou, parafraseando Stuart Hall, que negro é este na música experimental, dinâmica por definição? Estudos pioneiros e basilares acerca da negritude e temáticas afro foram em direção à formação de identidades, buscando desconstruir ideologias racistas hegemônicas e mitologias nacionais infundadas — caso do historiador, antropólogo e físico senegalês Cheikh Anta Diop, que derrubou o racismo científico ao provar que o Egito era uma civilização negra; e do músico, compositor, historiador e escritor brasileiro Nei Lopes, que trouxe à tona as importantes contribuições dos povos bantos na formação da cultura e identidade nacional. Embora sejam pesquisas fundamentais, esse tipo de abordagem não dá conta do quadro geral. Haverá sempre o desvio. Aquilo que vaza entre os alinhamentos identitários. Em resposta à complexificação do racismo nos interstícios de um nova linguagem (texturizada, molecular, fragmentada) e do novo cenário econômico (das relações trabalhistas neoliberais e do homem “empresário de si”), proliferam-se no século XXI múltiplas maneiras de ser negro, de tornar-se negro, de performar a negritude, de desafiar a negritude, de incorporar a negritude — transcendendo assim o entendimento convencional da negritude.

É neste sentido que coletivos/selos como o NON Worldwide, Nyege Nyege Tapes, Coletividade Namíbia e Black Quantum Futurism e artistas os mais distintos como RP Boo, Bonaventure, Saskia, Guillerrrmo, Moor Mother, Tantão, Negro Leo, Juçara Marçal, Jlin, Lonnie Holley, JPEGMAFIA, Travis Scott, Bongar e Mestre Anderson Miguel (para ficar entre só entre os nomes de destaque no som dos últimos anos) articulam uma constelação conectada pelo princípio da multiplicidade. Opondo-se à raça como uma categoria congelada e enclausurante, suas músicas tomam o devir-negro como uma plataforma de possibilidades. Uma estrutura de saberes que oferece uma forma singular de ver, conceber e narrar o corpo; de escrever a si e o mundo em sua volta. Uma complexo prático e teórico contra-ideológico. Porque denegrir o pensamento é acionar uma contra-modernidade, indo em direção contrária à “modernidade” tradição filosófica que se orientou a partir da desvalorização dos saberes negros — afinal, a visão do negro como fundamentalmente não-humano que legitimou ideologicamente a escravidão e a colonização foram parte do pensamento moderno ocidental desde o início.

O colonialismo e a escravidão levam adiante a imposição de uma forma de ver o mundo, bem como uma distribuição de tempo e uma atomização do espaço. A manipulação do espaço-tempo é o que permite a emergência de outros futuros possíveis, do imprevisto. Na contramão de uma temporalidade linear, o afrofuturismo abandona o fetiche do futurismo italiano dos anos 1920 por um futuro desprendido do passado e ativa um tempo-expandido e descontínuo, no qual o futuro é construído a partir da deriva histórica e da memória. Transformar a experiência sensível do tempo é lançar o corpo-mente numa experiência sensível radicalmente decolonial. “Destroy the master’s clock”. Remodelar o tempo é imperativo na música desses artistas — a multitemporalidade nas infinitas camadas de samples em faixas como “Mulatre”, de Bonaventure; o sincopado assimétrico dos beats de RP Boo. Procedimentos que, em vez de assentar pilares e demarcar territórios, embaralham a percepção. Porque, como a arte mais disruptiva e desafiadora, a negritude é sempre uma pergunta, nunca uma resposta.