“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!’. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: ‘Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!’. Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?”
Friedrich Nietzsche, em A Gaia Ciência
to be held for a long time
La Monte Young, composition 1960 #7
“Considerei que mesmo nas linguagens humanas não existe proposição que não implique o universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfematória. Um deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma palavra articulada por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros dessa palavra, que equivale a uma linguagem e a quanto pode compreender uma linguagem, são as ambiciosas e pobres palavras humanas, tudo, mundo, universo.
Jorge Luis Borges, em “A escrita do Deus” (conto de “O Aleph”)
“Tudo pode ser infinito. A falta de limites significa que algo pode ir a qualquer lugar; é por isso que minha música é alta.”
Keiji Haino
O número 8 é dos mais cheios de simbologia: significa Jesus Cristo no Cristianismo, é o número da sorte na China, consagrado na antiga Atenas, universalmente considerado o signo do equilíbrio cósmico e da justiça. Ao desenhar o conceito desta edição, justamente a 8ª, foi impossível não criar uma associação com o 8 deitado, um dos símbolos do infinito. Para um festival que busca não ter limites como o Novas Frequências, a conexão já nasceu pronta. Ao procurar sempre não se repetir e apresentar uma música que em muitos casos não pertence aos formatos tradicionais estéticos e mercadológicos, o Novas Frequências, desde sua primeira edição, tangência questões e procedimentos direta ou indiretamente ligados ao infinito. Só para citar alguns artistas que poderiam perfeitamente estar nesta edição: Sun Araw (2011), pole (2012) Stephen O’Malley (2013), Laraaji (2014) e assim sucessivamente.
O entendimento da noção de infinito é um dos maiores enigmas enfrentados pela humanidade. Alquimistas, filósofos, matemáticos, físicos, cosmólogos, psiquiatras, intelectuais e escritores se debruçam sobre o assunto há centenas de anos. Ligada à física, uma das mais novas teorias sobre o tema, com defesa do cosmólogo sueco Max Tegmark, diz inclusive que o infinito não existe e que não precisamos dele – “o infinito é uma aproximação extremamente conveniente para a qual não descobrimos alternativas convenientes”. De qualquer forma, existindo ou sendo apenas uma maneira de expressão, como afirmava categoricamente o matemático e astrônomo Carl Friedrich Gauss, o tema é dos assuntos mais fascinantes. Como não poderia deixar de ser, é favorito nas artes: de Tunga à Olafur Eliasson; de Magritte à Cildo Meirelles; de Escher à Carsten Nicolai. De Yayoi Kusama à Guilherme Vaz. De Sofia Borges à Ryoji Ikeda. De Richard Serra à Daniel Senise. A lista é (sem trocadilho) infinita.
No caso da música, diversas técnicas e processos buscam à chamada música livre, uma série de práticas e estratégias que tem como objetivo libertar o som da tirania do compositor e assim aumentar exponencialmente as possibilidades criativas. Aleatoriedade, indeterminismo, acaso, improvisação, música generativa e inteligência artificial, por exemplo. Outra forma de criação sonora que evidencia uma aproximação com o infinito são os drones, notas sustentadas por longos períodos que nos fazem perder a noção espaço-tempo. Muito antes do minimalismo norte-americano de La Monte Young e Terry Riley, os drones já eram utilizados há séculos pelos sufistas, hinduístas e zen-budistas. A verdade é que peças com durações extremas são uma obsessão artística. “Organ²/ASLSP (As Slow as Possible)”, de John Cage, começou a ser tocada em 2001 em uma igreja de Halberstadt, na Alemanha – e será tocada até o ano de 2640. Falando em Cage, sua filosofia musical de certa forma alude à música infinita ao assumir que tudo ao nosso redor é música. Cage desta forma sintoniza seus ouvintes a um domínio de som que precede a música e, de fato, todas as contribuições humanas: o fluxo sonoro do mundo. Anos depois, inspirado em Cage e no futurista Luigi Russolo, R. Murray Schafer propunha que o mundo fosse tratado como uma vasta composição musical que se desdobra em torno de nós incessantemente (“The Music of the Environment”). Na mesma pegada, Olivier Messiaen dizia que “a natureza é o recurso supremo”. A música é infinita. E até mesmo mundos previamente inaudíveis e inimagináveis podem ser hoje escutados graças a avanços tecnológicos: modos de representação sônica e transmissão trazem aos ouvidos sons de territórios como o fundo do mar, o interior das nossas cabeças, e o espaço exterior; novas tecnologias diminuem as diferenças entre o mundo dos que escutam e o mundo dos surdos através de correntes vibracionais; técnicas de sonificação tornam informações e materiais não-sonoros audíveis (manchas solares, dados de mudanças climáticas).
Experimentalismos e vanguardismos à parte, até mesmo o bom e velho pop radiofônico pode ser infinito. Sim, aquele chiclete com refrão grudento que não sai nunca da sua cabeça.
Infelizmente, ao longo do processo de curadoria e pré-produção do festival, o tema escolhido para esta 8ª edição começou a ganhar um outro contorno bem menos lúdico, metafórico e artístico. O infinito também pode ser bastante aterrorizante. Escrevo estas linhas exatamente um dia antes do resultado das eleições presidenciais. O resultado não importa. Mesmo com a democracia ganhando – como se espera, é claro -, aproximadamente metade da população brasileira foi às urnas endossar um monstro que, dentre outras barbáries, não só glorifica os anos de chumbo da ditadura como idolatra torturadores (não sei se por ignorância, auto-sabotagem, lavagem cerebral midiática, técnicas militares de campanha aliadas a criação de fake news e uso de novas tecnologias, ou mesmo identificação ideológica). Se queremos progredir, não devemos repetir a história, mas criar uma história nova. A frase, que pertence ao Gandhi, parece não fazer sentido no Brasil, o país que não é para amadores. Estamos, é o que parece, dando voltas, vivendo um grande loop, um eterno dia da marmota.
Um dos conceitos mais caros à obra de Nietzche é o chamado “eterno retorno”. Presente em boa parte de sua obra, o conceito diz respeito aos ciclos repetitivos da vida: estamos sempre presos a um número limitado de fatos, fatos estes que se repetiram no passado, ocorrem no presente e se repetirão no futuro, como por exemplo, guerras, epidemias, etc. Uma vez queimado, o mundo se reconstruiria para que os mesmos atos ocorressem novamente.
A serpente, enrolada em um ovo, era um símbolo comum para os egípcios, os druidas, os povos do norte europeu e os indianos. O “Ourobouros” era encontrado na antiga literatura esotérica e em diversas tradições ocultistas e escolas iniciáticas em forma de amuleto. É uma referência à criação do universo e aos ciclos da vida. O círculo (ou a roda) indica, além do eterno retorno, movimento, continuidade, auto-fecundação, a espiral da evolução, a dança sagrada de morte e reconstrução.
O infinito só existe porque existe o finito. E como não sabemos como será o dia de amanhã, minha sugestão é que você se perca, no melhor dos sentidos, nesta Zona Autônoma Temporária de sete dias de duração batizada Festival Novas Frequências. Divirta-se. Faça ela durar para sempre na sua memória.
E que a gente se reconstrua logo após tudo isso. Só que desta vez, que tenhamos forças suficientes para quebrar o loop.
Chico Dub é curador e diretor artístico do Festival Novas Frequências.