No começo desse ano eu sonhei que tocava uma viola-de-cocho preparada em uma improvisação com o músico japonês Otomo Yoshihide, que por sua vez tocava um shamisen elétrico. O shamisen elétrico aparecia nesse sonho como um ente-instrumento, talvez alguma associação do meu inconsciente à tradição musical de origem de Yoshihide e à própria guitarra elétrica, instrumento com o qual vinculo a imagem do músico japonês desde que comecei a escutar sua música. Esse sonho me fez pensar que muitas vezes o sonhar com música talvez seja uma livre improvisação da nossa consciência, assim como a própria música improvisada é um sonho daquilo que a gente chama de música, ou desse acúmulo de consciências e vivências sonoras ao longo de um percurso de escutas, leituras e experiências com o som. E nessa instantaneidade improvisacional onírica, se compunha um lugar-emaranhado de irradiações, num fluxo, gestual, texturial, sonoro, ruidístico, operado pela relação entre dois ente-instrumentos na construção poética e política de um espaço sonoro.
Esse sonho ocorreu dentro de um contexto de espera da confirmação da vinda de Otomo Yoshihide pela primeira vez ao Brasil. Talvez um tempo de latência musical em que o silêncio se adensa à espera do gesto que deflagra o primeiro som, o tempo de espera que antecede a improvisação. Durante dois anos mantive em minha casa uma prática de diária de improvisação, num gesto cotidiano de registro em forma de diário. Após um dia de práticas ordinárias, cotidianas, me centrava para fazer uma improvisação e seu registro. A cada dia que se passava eu percebia que esperava esse momento do dia chegar, ao ponto de algumas vezes sonhar com a improvisação que viria. E de alguma forma, percebia dia após dia, que a improvisação se impregnava das coisas que eu vivia, escutava, pensava, acumulava, ainda que eu buscasse um esvaziamento consciente pra viver o instante da improvisação. E é sobre essa espera e sobre o que esperar da vinda de Otomo que eu também gostaria de falar aqui.
Considerado o espectro amplo e variado de sua produção, desde os anos de 1980 até hoje, Otomo pode ser considerado um músico que escapa a quaisquer tentativas de associação a uma única corrente musical: do jazz ao noise, do rock às performances com os turntables, da improvisação à instalação sonora e ainda com uma intensa produção de trilhas sonoras para cinema e TV. Ele prefere definir-se apenas como um músico que se limita a fazer sua arte, seguindo suas temáticas e interesses, ainda que aos outros possa parecer incoerente ou contraditório. Entretanto, se definir seu trabalho a um limite estilístico é algo quase impossível, o reconhecimento da originalidade e grandeza de seus trabalhos é incontornável. Álbuns como Consume red e Playing Stardards (com o grupo Ground Zero) ou o memorável tributo a Eric Dolphy em Out to lunch (com a OYNO); isso sem falar nos outros projetos em grupos, ou diferentes parcerias improvisacionais; sem contar também com os álbuns Cathode (1999) e Anode (2001), que foram os que me introduziram ao seu universo criativo; deixam evidente uma poética que entrelaça essa complexa teia de trabalhos distintos, a improvisação.
Otomo opera, pensa e cria como um improvisador que tem uma pulsão de busca e se lança ao inesperado sempre. Talvez por isso esteja aberto a trabalhar com diferentes músicos e a propor descentralizar os projetos que contam com grandes formações. Sua postura é de se colocar nesses desafios como um barqueiro diante das forças da natureza, saber interagir com a força do mar e do vento para, a partir dela, conduzir sua própria trajetória. Entrar na onda e ao mesmo tempo ser parte constitutiva dela me parece uma imagem muito pertinente à sensação que tenho ao improvisar com outras pessoas. O instrumento, qualquer que seja a sua natureza, torna-se o veículo dessa ação de se adentrar nesse mar.
Suas improvisações solo, tanto com a guitarra elétrica, quanto com as vitrolas, me transportam de volta ao sonho inicial, o shamisen elétrico. Ali consigo escutar algo de tradicional ligado à música japonesa. Não uma tradição milenar, mas uma tradição que o próprio Otomo cita como sua grande primeira influência, o gesto improvisacional de Masayuki Takayanagi, guitarrista japonês pioneiro no free jazz. Ou talvez ainda mais do que isso: Takayanagi, juntamente com o saxofonista Kaoru Abe, levou o free jazz ao limite e às portas de entrada da noise music. A imagem em sonho desse instrumento híbrido, talvez seja a representação do que o prório Otomo chama de tradição musical quando se refere a esses dois músicos.
Certo é que a espera que antecede a improvisação é fundamental. O silêncio dessa espera é a escuta do som antes que o som se faça como fenômeno acústico no instante. E o sonho, nesse caso, é a improvisação da consciência de um ouvinte desse mar profundo e diverso que é a música de Otomo Yoshihide.
Marco Scarassatti, Artista sonoro e professor da UFMG.