Na música jamaicana, nada se perde, tudo se reforma. Terra das praias de águas cristalinas, das montanhas verdejantes, do rum embriagante, do turismo que esconde as vastas desigualdades sociais, da refrescante Red Stripe, da deliciosa jerk chicken e do maior corredor de todos os tempos, sem mencionar a erva dos mil encantos, a ilha conquistou sua independência do Reino Unido em 1962 e, desde então, se movimenta numa série de ritmos e batidas sem similares. Do ska ao ragga, do reggae ao dub, do rock steady ao dancehall, os sons da Jamaica são endêmicos, mas têm, paradoxalmente, a incrível capacidade de se replicar e se espalhar pelo planeta. Os riddims são um exemplo desse heterodoxo jeitinho local de rebolar conforme a própria música.
Ao pé da letra, riddim é, simplesmente, o rhythm (ritmo) encharcado do patois (gíria) caribenho. Na prática, porém, ele revela muito da incrível capacidade de criação e recriação dos músicos e produtores jamaicanos, peritos em estender a vida útil de uma boa idéia até o infinito e além. Favor não confundir com plágio, apropriação ou “inspiração” suspeita, como o rock nos ensinou. Em seus primórdios, os Rolling Stones, por exemplo, cresceram a partir das idéias de Chuck Berry, assim como o Led Zeppelin decolou abastecido pelo template blues de Willie Dixon e Howlin´ Wolf. Na Jamaica, o processo foi outro: foi o da auto-cópia, foi o da cópia aberta, foi o do open-source antes mesmo que o conceito fosse inventado.
Tradicionalmente, os produtores jamaicanos sempre usaram o lado A e o lado B dos seus compactos como coisas distintas. No primeiro, ficava a música propriamente dita. No segundo, a versão instrumental, para ser usada nas festas comandadas pelas equipes de som, com seus microfones abertos para o improviso e a falação dos aspirantes a MC. Que isso tenha desembocado no dub, no remix, na disco, no hip-hop e na música eletrônica, é uma (outra) longa história. Por hora, vale acompanhar “Real rock”, do Sound Dimension, possivelmente, o melhor abre alas para evoluir com esse malandro enredo “O Desabrochar dos Riddims na Ilha Mágica do Reggae”.
Gravada em 1967 pelo grupo residente do lendário Studio One, do não menos mítico produtor Coxsone Dodd, a música, pontuada por um grave bojudo e um órgão certeiro, nem chegou a fazer grande sucesso na época. Mas sua levada pegou. Primeiro foi o místico Augustus Pablo que usou a base de “Real rock” para fazer uma nova canção, “Rockers rock”, lançada em 1973. Depois, vieram Junior Murvin, Dennis Brown, Michigan & Smiley, Johnny Osbourne e até o The Clash, que a reciclou em “Armagideon time”, incluída no militante álbum “Sandinista”, de 1980. Cada um deles trouxe uma nova letra e um novo contexto para a original. Pedra fundamental da estética riddim, “Real rock” continua a ser reaproveitada e atualizada.
A onda riddim explodiu de vez mesmo a partir dos anos 80, com o surgimento do dancehall e a popularização dos sons digitais. O marco dessa virada foi outra música ganchuda, “Under mi sleng teng”, gravada pelo cantor Wayne Smith e produzida por King Jammy em um teclado Casio. Por conta da facilidade de replicação do seu DNA eletrônico, “Under mi sleng teng” – marotamente inspirada em “Hang on to yourself”, de David Bowie, fase Ziggy Stardust – se tornou uma febre nos bailes e ganhou, inicialmente, um álbum só de versões, lançado em 1985, assinadas por feras da época como Sugar Minott e Tenor Saw. Depois, o ritmo viralizou e se espalhou pelo planeta. Foi um dos primeiros riddims a virar nome próprio, “Sleng teng”.
O resto é história em andamento rebolativo. Riddims passaram a ser criações tão disputadas e valorizadas quanto uma boa canção, muitas vezes, levando o ouvinte a se perguntar o que está tocando, afinal. A levada de “Rumors”, de Gregory Isaacs, por exemplo, pode ser ouvida em “Telephone love”, de JC Lodge, ambas produzidas em 1985 por Gussie Clark, outro midas do dancehall. Nesse embaralhamento, os direitos autorais, sempre “flexibilizados” em solo jamaicano, seguem flutuando, às vezes perdidos no espaço das versões.
Gravadoras especializadas em reggae como Greensleeves, Jet Star e VP Records passaram a lançar compilações de riddims populares. E a fila de riddims não parou mais de andar: “Punanny”, “Stalag”, “Taxi”, “Cuss cuss”, “Satta massagana”, “Bun bun”, “Bellyas”, “Jumbie”, “Tunda klap”, “Juice” etc etc etc.
No Brasil, essa onda bateu igualmente bem, como mostrou o coletivo Digitaldubs, que lançou o álbum digital “Brasil riddim”, em 2006, misturando dancehall com funk carioca, com artistas como BNegão e o saudoso Mr. Catra. Outra equipe, Dubatak, foi pelo mesmo caminho com o álbum “Old feeling riddim”, de 2012. Riddims passaram também pelo dubstep e, hoje, desfilam pelo hip-hop, pelo grime, pela soca e por onde mais se bata um pezinho. Na espantosa ecologia da música jamaicana, ritmos nunca se perdem. Eles sempre se reformam. Infinitamente.