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“África Bantu Brasileira”, de Kiko Dinucci

clementina

Há no Brasil, predominantemente, a presença de duas etnias africanas na formação da nossa música, os bantus (Angola, Congo, Moçambique, entre outros povos) e os yorubás (Nigeria, Benin). Outros grupos como os fons (gêges) e os malês influenciaram em casos mais isolados e em menor escala. O fio condutor que liga a música dos bantus e yorubas no Brasil é a manifestação religiosa.

Os yorubas, com a sua base religiosa bem consolidada, desaguaram a sua música nos terreiros brasileiros, onde nigerianos de diversas cidades passaram a cultuar suas divindades em um único espaço. Em terras natais esses deuses eram cultuados cada qual em sua própria cidade (com exceção de Exu que é cultuado em todo território nigeriano). No Brasil, esses diversos espaços africanos foram obrigados a se concentrarem nos metros quadrados das senzalas brasileiras. Não só cidades nigerianas se fundiram, bantus e fons também se organizaram nesse mesmo espaço.

Por serem os primeiros africanos em massa a chegarem no Brasil, os bantus foram o grupo étnico que primeiro sofreu com a catequização europeia e perda do culto aos ancestrais. Mais tarde, na Bahia, o contato com os yorubas acabou influenciando os bantus a desenvolverem o Candomblé Angola, que como uma tecla sap, trocava as entidades yorubas por entidades correspondentes bantus, porém, mantendo uma estrutura muito semelhante. Nesse candomblé tocava-se um ritmo chamado Kabula, que se desdobrou no samba de roda, no samba duro e na chula. Posteriormente, esse samba migrou para o Rio de Janeiro e se tornou a base do samba carioca do começo do século XX, concentrada na figura da baiana Hilária Batita de Almeida, a Tia Ciata, que, não por acaso, era também Iyalorixá.

No sudeste, os ritmos bantus se mostraram em diversos formatos, mesmo com influência cristã sincretizada. Ritmos como Congada e Moçambique (Minas, São Paulo e Rio de Janeiro) e o Congo Capixaba passaram a cultuar os ancestrais de uma outra maneira, com ligações estreitas com os santos católicos de origem africana, como São Benedito, Santa Efigênia, São Elisbão, Santo Antônio de Categeró e, sobretudo, com a figura da Nossa Senhora do Rosário (também chamada de Mãe dos Homens Pretos).

Outros ritmos bantus se espalharam pelo sudeste (Jongo, Candombe, Batuque de Umbigada), nordeste (Maracatu, Coco, Tambor de Crioula, Boi Bumbá) e região norte (Carimbó). Mesmo quando em forma de dança profana, traziam alguma menção religiosa, aos santos pretos da igreja católica ou à África de outrora, deixada apenas fisicamente do outro lado da Kalunga.

No século XX, com a presença do rádio, dos ícones do samba carioca e depois dos diversos segmentos da linha evolutiva da canção popular brasileira, a África se mostrou na presença de artistas como Heitor dos Prazeres, Clementina de Jesus, Candeia, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Jorge Ben, Gilberto Gil, João Bosco, Luiz Melodia, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Naná Vasconcelos, Itamar Assumpção, Jards Macalé, entre outros. Todos traziam o âmago de uma expressão sofisticada e complexa, relacionada ao corpo, ao transe, à arte suprema de uma rica cultura vinda do continente/berço da humanidade.

Na música brasileira do século XXI, a influência africana não precisa estar necessariamente ligada à sua fonte genealógica. É possivel assistir no Youtube do Semba angolano tradicional ao Kuduro das ruas de Luanda. Podemos nos maravilhar com as kalimbas do Kasai All Stars ou Konono, ambas do Congo. Desfrutar das guitarras do deserto dos tuaregs do Tinariwen ou do Bombino.

Juçara Marçal e Cadu Tenório parecem trafegar por esses dois mundos, o da África genética brasileira e o da África pós-moderna da internet. A ousadia de revirar os Visungos, o Candombe, o Congado e Reinado mineiro, leva a nossa genética africana rumo ao contemporâneo, ao agora, para quem nunca ouviu falar nesses ritmos tradicionais ou para quem nunca teve contato com a música experimental investigativa.

Anganga nos leva ao Brasil moderno que aceita sua descendência africana diante de um país massacrado diariamente pelo racismo. Mesmo envolto por ruídos e barulhos, Anganga, na nossa atual conjuntura, funciona como uma espécie de contraponto de luz diante do Brasil retrógado que insiste em ainda copiar os modelos da era colonial. Juçara e Cadu nos mostram que o momento é de olhar adiante.