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Espiral

“O som não possui face oculta, ele é todo adiante detrás e fora dentro, sentido de ponta-cabeça com relação à lógica mais geral da presença como aparecimento, como fenomenalidade ou como manifestação, e, assim, como face visível de uma presença em si subsistente. (…) Escutar significa entrar nessa espacialidade pela qual, ao mesmo tempo, eu sou penetrado: porque ela se abre em mim bem como ao redor de mim, e de mim assim como em direção a mim: ela me abre em mim tanto quanto ao fora, e é por uma tal dupla, quádrupla ou sêxtupla abertura que um “si” pode ter lugar.”[1]

Flutua, ecoa, passa, se transforma… Cria-se a partir dos elementos existentes no espaço e é criador de comportamentos e ritmos locais. Sendo onipresente, o som preenche todos os ambientes: interno e externo, natural, urbano ou rural.

As paisagens acústicas são compostas essencialmente por três elementos: a biofonia, geofonia e antropofonia [2]. Cada um, respectivamente, representa os sons emitidos por qualquer animal, sons físicos da natureza, como trovões, chuva, vento etc. e sons produzidos por seres humanos. Juntos ou separados, estes são capazes de refletir todos os processos e relações sociais e naturais que ocorrem no espaço-tempo.

Ciclos sazonais, diurnos, noturnos, lunares, padrões ou marcos sonoros naturais ou criados, estabelecem um ritmo e modo de vida aos animais e humanos e se apresentam de diferentes formas em cada paisagem.

Em Istambul, por exemplo, todos os dias, por cinco vezes ao dia a cidade é preenchida pela leitura do alcorão (livro sagrado do islã) feita ao vivo dentro de cada mesquita, presente no local, e projetada para a população através de alto-falantes instalados nas torres de cada uma delas. Este padrão sonoro tem como objetivo convidar os fiéis à oração, estabelecendo assim um comportamento diário e uma paisagem acústica característica.

Já em locais onde a antropofonia tem menor ou nenhuma interferência no ambiente sonoro, os ciclos naturais, elementos orgânicos e físicos, criam acústicas específicas para cada local e tempo. Neste tempo natural, os modos de vida da fauna presente são influenciados diretamente separando os corais matutino, diurno, vespertino e noturno de mamíferos, aves e anfíbios.

Na aldeia indígena Kayapó, situada numa área da floresta Amazônica ainda pouca alterada pelas atividades humanas, é possível perceber claramente as diferenças acústicas nas transições da noite para o alvorecer, do alvorecer para o entardecer, e assim por diante. Ao se escutar o primeiro pássaro (por volta das 4h da manhã), os sapos se silenciam e só retornam ao anoitecer, quando o canto dos pássaros começa a se extinguir novamente.

A comunicação acústica dos animais é essencial e serve para proteger a si mesmos, aos seus territórios, se reproduzirem e se alimentarem. Desta forma, uma nova linha de pesquisa chamada

“ecologia da paisagem sonora” surge para estudar os processos e interações sonoras de todos os seres, na escala espacial e temporal. Este ramo da ciência nos fornece informações sobre a saúde do habitat, auxilia o direcionamento para estratégias de conservação e favorece a identificação e preservação de espécies, entre outras abordagens.

No livro A grande orquestra da natureza, do músico e naturalista Bernie Krause, diversas experiências sonoras vividas pelo autor são relatadas e princípios da ecologia da paisagem sonora são abordados para alertar sobre os impactos das atividades humanas no ambiente. O que ele tem percebido, principalmente, é que ao analisar um gráfico sonoro de um habitat saudável é possível distinguir as vocalizações de cada animal e identificar padrões de comportamento. Já em biomas danificados, ameaçados ou alterados, as biofonias perdem a densidade, diversidade, se desarticulam e se tornam caóticos, podendo levar anos até que as vocalizações se reconstituem novamente. Assim a ecologia da paisagem sonora vai além da abstração das vozes de indivíduos isolados, mas sim analisa o espaço em sua totalidade considerando toda a comunidade acústica, suas interações e transformações.

Sobre essa totalidade, o trio Luisa Lemgruber, Gabriela Mureb e Sanannda Acácia criam um ambiente que se utiliza de diversos elementos naturais, biológicos e não biológicos para uma condução entre estados e intensidades sensoriais, explorando os limites da paisagem.

 

Referências

 

[1] Jean-Luc Nancy. À escuta. 2014

[2] Bernie Krause. A grande orquestra da natureza: Descobrindo as origens da música no mundo selvagem. 2013

 

Luisa Lemgruber é artista sonora, geógrafa e atração do Festival Novas Frequências ao lado de Gabriela Mureb e Sanannda Acácia.