Novas Frequências 2014

Questão de ritmo

markfell

Por: Ruy Gardnier (Crítico e jornalista)

Uma das características mais misteriosas de um dos discos mais misteriosos surgidos nos últimos anos, Traditional Music of Notional Species Vol. 1, é que as músicas do lado A se chamam “Dances” e as do lado B se chamam “Themes”. E que, num disco que parece ter o ímpeto de fazer nascer a música do zero, figurando um povo imaginário — a espécie nocional — e inventando-lhe uma música tradicional, a ideia de ritmo a partir dessas duas palavras, “dança”, “tema”, seja tão presente. Ritmo explícito para as danças, implícito para os temas (um tema para casamento, um tema para funeral precisam respeitar o ritmo da liturgia). E no confronto com a audição do disco de Rashad Becker, que surpresa: uma cadência, sim, alguns elementos de repetição, sim, mas nada sequer parecido com um pulso periódico que norteie a sensação do ouvinte, recoloque suas percepções na contagem de quatro que povoa uma vasta porcentagem do que se entende por música eletrônica.

Mas, como ritmo não se resume a andamento nem a pulso, é preciso levar a sério as opções de Becker em nomear suas aberrantes criaturas. Pois ainda que o que há de magistral do disco não sejam os ritmos — são, indubitavelmente, os ataques cheios de glissandos de timbres sintéticos inauditos —, há uma severidade na manutenção sempre lenta da cadência e da relação entre aparecer/desaparecer de elementos sonoros novos que cria uma vigorosa tensão na percepção de quem ouve, realmente fundindo uma certa noção mental de música tradicional (ritualística, comunal, codificada pelas necessidades do grupo) mas indo também à frente da vanguarda para cunhar novos sons e organizá-los de modo incomum.

Se Rashad Becker utiliza uma nesga de ritmo para dar uma conformação perceptiva ao universo sonoro que cria, Keith Fullerton Whitman vem desde Disingenuity/Disingenuousness botando abaixo as noções de repetição e permanência que num dado momento foram tão importantes em sua obra. Dos amparos tradicionais de ritmo não há nada, pulso, cadência constante, andamento… e mesmo assim tudo é ritmo nas ensandecidas dinâmicas de velocidade e nas percepções de cheio e vazio que preenchem nossa sensibilidade à medida que tentamos — e felizmente não conseguimos — capturar o sentido total de todos aqueles trocentos sonzinhos microscópicos que parecem ao mesmo tempo absolutamente compostos e absolutamente frutos de felizes acasos. Na ausência do ritmo, só ritmo há.

Estratégia outra é a de Sasu Ripatti e Mark Fell em suas obras recentes. Se KFW e Becker abstraem, Ripatti e Fell dinamitam por dentro o domínio do ritmo estável produzido por caixa, bumbo e contratempo que norteia todos os subgêneros mais conhecidos da música eletrônica. Em seu projeto Sensate Focus, Mark Fell flerta com o ideário cartesiano (ao invés de lados A e B do vinil, lados X e Y, como as coordenadas gráficas) mas seu objetivo é criar desorientações rítmicas a partir de um subgênero eletrônico bastante dócil e popular, o garage house. Fragmentos de vocal feminino, bumbo, caixa e contratempo estão lá, mas nunca exatamente no lugar certo. Seja por subtração (sentir que um bumbo ou uma caixa deveria estar lá e não está), seja por repetição (ver um pulso ou um compasso insistente durando mais do que deveria em condições normais), seja por proliferação (elementos que incidem mais do que deveriam, ou onde não deveriam), a sintaxe habitual que torna uma faixa de garage house dançável é impiedosamente burlada, e suas matérias primas são transformadas em puros ingredientes de experimentação. Mas não é uma música zombeteira: há um amor implícito a todas as sonoridades e formas de arranjo do gênero que norteiam as opções de composição que estão à mão. Não é negar, é dar um passo além, mais especulativo.

Se Mark Fell com seu Sensate Focus apodera-se de um campo sonoro mais aprazível para fincar suas garras, Sasu Ripatti traz para si os extremos de velocidade do footwork de Chicago em seus últimos lançamentos pelo recém-criado selo Ripatti. Assinados como Ripatti, como Vladislav Delay ou como Heisenberg (esse último um duo com Max Loderbauer), esses EPs nomeados a partir do número de série do selo atacam com radicalidade inesperada ao apropriar-se do footwork e do que ele tem de mais radical em termos de velocidade e batida quebrada, e retirar-lhe o aspecto de soul e R&B que o torna mais carnal. O resultado? Uma soberba desorientação rítmica que consegue casar o cerebralismo de Mark Fell com o senso de molecagem de Aphex Twin em seus momentos mais caóticos.

Organizador implícito em Rashad Becker, hiperexistente pela própria ausência em Keith Fullerton Whitman, implodido pelo excesso nas produções recentes de Mark Fell e Sasu Ripatti, o ritmo ainda é campo de batalha e protagonista nas lutas em prol da desestabilização perceptiva que quase toda melhor arte produz. Tão velho, tão propulsor do novo.

 
Comments