Por: Thiago Filardi
“Quarto mundo”, na política, pode se referir a populações excluídas da sociedade, povos nômades e agricultores, alheios à era industrial, ou habitantes de países do Primeiro Mundo, mas cujas condições são de Terceiro Mundo. O conceito diz respeito a pessoas que vivem em regiões aonde a tecnologia sequer chegou, apesar da globalização e do world wide web. Mas a acepção musical de “quarto mundo”, cunhada pelo músico norte-americano Jon Hassell, em 1980, no álbum Fourth World: Vol. 1 – Possible Musics, gravado com Brian Eno, prega uma visão contrária a essa, ou, pelo menos, mais idealista: o encontro desses mundos e o de culturas tradicionais orientais e ocidentais com a tecnologia moderna (“as músicas possíveis”). No disco seminal, Eno e Hassell combinam bases eletrônicas minimalistas, percussões indianas, sintetizadores e técnicas de trompete inovadoras de Hassell, que foram influenciadas por seus aprendizados com o guru Pandit Pran Nath, resultando em um dos timbres musicais mais exóticos e singulares da história da música.
Uma figura que pode ser associada aos primórdios do “quarto mundo” é o norte-americano Edward Larry Gordon, mais conhecido como Laraaji, que foi descoberto por Brian Eno no final dos anos 70 e gravou o terceiro volume da série Ambient, Day of Radiance (1980). Desde então, ele vem trazendo para o mundo ocidental, através da cítara (zither em inglês; não confundir com o sitar indiano), seu principal instrumento e de suposta origem chinesa, sonoridades delicadas e celestiais, realçando aspectos meditativos (também mais comumente relacionados à cultura oriental). Aspectos esses extraídos não apenas de sua música, influenciada por Terry Riley, Sun Ra e John Coltrane, mas também de sua personalidade, mística e espiritualizada. No entanto, vale mencionar que Laraaji não faz um uso tradicional da cítara, mas a manipula eletronicamente, o que dá aos seus discos uma aura especial e única.
Outro projeto contemporâneo que dialoga com ancestralidades orientais e as filtra através de técnicas modernas de fazer música e soar um instrumento, como a extended technique e o sample, é o Tarab Cuts, dos ingleses John Butcher e Mark Sanders. O conceito de tarab remonta à cultura erudita árabe do início do século passado e significa a fusão entre música e transformação emocional. O saxofonista Butcher, que compôs a peça, e o baterista Sanders trazem o tarab, expressão sem equivalentes em nenhuma língua ocidental, aos dias de hoje através de improvisações e multitracking de faixas tiradas da coleção de 78 rotações de música clássica árabe de 1903 a 1950 (cerca de 7 mil discos) do músico libanês Tarek Atoui. Além do saxofone e bateria, há a presença dos instrumentos tocados nesses discos, como o ney e o oud, cujos primeiros registros datam de 5 mil atrás no Oriente Médio, o violino e os cantos e percussões Sufi.
Mas enquanto Butcher, Sanders e Laraaji tocam uma esfera mais contemplativa e emocional do “quarto mundo”, artistas como William Bennett, do Whitehouse e Cut Hands, e Ben Frost se aproximam da música africana de uma forma mais intensa e áspera. Tanto é que Bennet, inicialmente, cunhou seu projeto Cut Hands como Afro Noise e, em seu último disco, Festival of the Dead, dá continuidade à estética sonora influenciada por músicas percussivas da África Ocidental, do Congo e de rituais de vodu haitianos. No caso de Ben Frost, seu último lançamento, A U R O R A, foi em grande parte escrito e concebido no Congo, aonde o artista viajou para fazer a trilha do filme The Enclave, de Richard Mosse. Lá, ele sofreu um choque cultural muito forte e, de uma maneira mais atmosférica, densa, texturizada e também imbuída de elementos percussivos, tentou reproduzir parte de sua experiência, que ele atribuiu como divisora de águas, dada a pobreza, a complexa situação política do país e o excesso de sons e signos por ele vivenciados.
Acercando-se da música africana, especificamente a de Burkina Faso — onde há uma vasta e rica tradição folclórica — por um viés mais melódico e, quiçá, fofo, o trabalho do músico dinamarquês Frisk Frugt acaba destoando do approach mais radical e selvagem de Frost e Bennett, embora ele também não dispense os elementos percussivos. Entretanto, seu álbum Dansktoppen Møder Burkina Faso I Det Himmelblå Rum Hvor Solen Bor, Suite (em português, “A Música Popular Dinamarquesa Encontra Burkina Faso no Espaço Céu Azul Onde Mora o Sol, Suíte”), de 2010, não é menos interessante e possui tamanha complexidade melódica e variação de instrumentos que é de deixar qualquer ouvinte estupefato.
Um artista que tem a tradição africana mais arraigada em sua origem é Marlon Silva, vulgo DJ Marfox. Nascido no Bairro da Portela, uma periferia de Lisboa, onde há uma descendência africana predominante, Marfox, desde jovem, assiste à mutação da música de gueto local, que mistura eletrônica com ritmos luso-africanos, como a semba e a kizomba, além do já tradicional kuduro. Seu último EP, Lucky Punch, funciona como um ótimo compêndio de todos esses estilos e influências, além de denotar o caráter cada vez mais diverso e multicultural da música eletrônica contemporânea.
Apesar de idealizado por Hassell há mais de duas décadas, o “quarto mundo”, como ele o imaginou, nunca fez tanto sentido quanto nos dias de hoje, em que assistimos a um interesse cada vez mais amplo e profundo de músicos e artistas europeus e americanos em conhecer e incorporar a música do Oriente e, principalmente, do continente africano. E a relação é quase recíproca, ou há 10 anos poderíamos imaginar que veríamos a música maliense representada pelo ngoni de Bassekou Kouyaté e sua banda em uma cidade do interior de Minas, ou um membro da família Kuti se apresentando em várias cidades do país, ou o grupo tuareg do Tinariwen convidando músicos de rock e folk para gravarem em seus discos? O fato de termos a presença de artistas ocidentais tão permeados pela cultura dita oriental em um festival como o Novas Frequências, no Rio de Janeiro, é mais uma prova de que o intercâmbio América/Europa x Ásia/África nunca foi tão intenso e unificador. Pode-se dizer que o “quarto mundo”, o belo conceito preconizado, praticado e fomentado por Jon Hassell é, hoje, uma realidade.