Por J.-P. Caron (Filósofo e compositor)
Cornelius Cardew: “Reflexão antes de uma performance. Uma partitura musical é uma construção lógica inserida no caos de sons potenciais que permeiam este planeta e sua atmosfera.” [1]
Estamos o tempo todo imersos em sons. A cada vibração do ar, novos sons. E a cada novo som, novos agentes que o causaram.
Cardew diz que uma partitura é uma construção lógica inserida neste mundo. Em certo sentido, é como se ela fosse um filtro. Assim, ela determina, de tudo aquilo que no mundo soa, tudo aquilo que faz parte da música a ser soada.
Em um sentido análogo, o instrumento musical é um filtro.
Por outro lado, estamos acostumados a pensar que o instrumento produz a música. Em certo sentido, sim. A música não existe sem o instrumento, mas enquanto instrumento ele está a serviço da música. Isto significa que além da música ser função do instrumento, este é construído a partir da música que se faz. O instrumento tem sua forma determinada pela música que se espera que saia dele.
Assim, o piano apresenta teclas brancas e pretas totalizando doze, que delimitam o universo sonoro a ser utilizado. Uma guitarra apresenta uma sequência de trastes que, se pressionados da forma esperada, resultam em relações melódicas e harmônicas formatadas dentro da tradição. Isto é o que se espera deles enquanto instrumentos.
Um dos critérios propostos por Michael Nyman para a música experimental é o uso do instrumento como configuração total. Mas o que significa isso? Instrumentos, além de instrumentos, são objetos, e enquanto objetos, guardam potencialidades que não são esgotadas por sua natureza instrumental.
O uso do instrumento como configuração total o abre a um universo sonoro que não comparece em seu campo pré-determinado de atuação (as teclas do piano e os trastes da guitarra), mas que está presente no instrumento enquanto objeto. Potencialidades várias se escondem no uso das caixas de ressonância, na intervenção direta nas cordas, ou no ato de “alimentar um piano”.
La Monte Young: “Trazer para o palco um pouco de feno e um balde de água para que o piano coma e beba. O intérprete pode então alimentar o piano ou esperar que ele se alimente sozinho.” [2]
O uso do instrumento como configuração total implica em um deslocamento de função do instrumento ou de partes dele. Este deslocamento incide sobre o filtro que aceita e rejeita os sons do mundo que podem ser absorvidos pela composição. Enquanto me movo nas teclas, me movo em um universo delimitado pelo temperamento. Quando saio delas e adentro as cordas, caixa, tampa, etc., meu universo se altera.
Não consigo sempre prever o que irá acontecer. O uso do objeto inclui uma parcela de imprevisível.
Pianoguitarra. É possível criar híbridos na medida em que os campos de absorção de sons possuem interseções. Toco diretamente nas cordas e o piano se torna uma guitarra. Os instrumentos são unidos pela presença do material-cordas. Minha ação sobre ele explicita essa continuidade. Quem ouve, ouve uma indistinção entre os instrumentos, que habitam um continuum de sons no qual ambos se encontram no meio e se separam nas extremidades. Aproximar-se e afastar-se é escolha daquele que toca (mediada pelas contingências do material).
“Oco é o espaço entre as coisas.”
Faz sentido fazer soar o espaço como continuidade, mas cuja continuidade inclui o descontínuo? Um vazio entre um e outro se interpõe, demonstrando por essa ausência mesmo a continuidade – um e outro se aproximam sem fundir-se. O vazio entre os dois demonstra a proximidade. Sem ele, dois tornar-se-iam um.
Dois não chegam a tornar-se um, mas aproximam-se assintoticamente. Assim, consigo aproximar meu instrumento daquele outro som, sem tornar-se ele.
A memória participa, portanto, do meu instrumento. A absorção de sons do mundo é função da memória que tenho destes sons, assim como das potencialidades do objeto que tenho sob as mãos e pés de incluí-los (imitá-los) no mundo que habito. O instrumento é uma máquina de seleção, mas também de mimese. Com ele imito o instrumento do outro, mas também quaisquer sons que acontecem.
São acoplamentos instrumento-instrumento, instrumento-mundo, corpo-instrumento, memória-corpo, memória-instrumento em todas as combinações possíveis. A tecnologia multiplica as possibilidades de acoplamento.
Como eu disse uma outra vez: Os dispositivos musicais montados [na obra] são, assim, exibidos como agentes com os quais o intérprete forma um corpo total.
Notas:
[1] “Reflection before a performance. A musical score is a logical construct inserted into the mess of potential sounds that permeate this planet and its atmosphere.” (Cornelius Cardew, Treatise Handbook)
[2] La Monte Young: Piano piece for David Tudor n. 1