Por: Vivian Caccuri (Artista plástica)
Por muitas décadas a América Latina se empenhou em incorporar o pensamento europeu na hora de construir e programar os espaços onde experimentamos a arte e a música: a arquitetura da sala de concerto moderna parte do princípio do silêncio absoluto para eliminar interferências nos sons produzidos pela orquestra. O teatro do séc XX aconteceria também a partir do silêncio e do escurecimento da sala, uma forma de marcar o início do espetáculo: essa técnica foi inventada por Wagner no séc XIX para estimular uma plateia quieta e concentrada. O museu modernista foi por muito tempo um projeto de espaço “sem ruído”, um lugar ideal para a pureza da visão. E o que dizer sobre a cor branca de suas paredes? O cubo branco foi desenvolvido simultaneamente pelos construtivistas soviéticos, instituições norte-americanas e pela Bauhaus. Depois que a escola foi fechada pelos nazistas na década de 30, o branco tornou-se a cor padrão dos museus do regime e só depois do fim da Segunda Guerra tornou-se dominante na França, Inglaterra e também no Brasil.
Após décadas de assepsia de branco, escuro e silêncio, foram necessárias obras de arte ambiciosas e provocadoras para revelar e deixar palpável o silêncio e as convenções desses espaços, fazer um público às vezes anestesiado perceber que está na verdade dentro de uma instituição e que alguém decide essas coisas: alguém decide que as paredes são brancas, que ninguém pode falar durante um concerto, que as cortinas se abrem em um momento e que a falta de interferência é o ideal para a experiência artística. O mais interessante aqui é ter em mente que nem sempre foi assim. Pessoas protestavam, gritavam e vaiavam no teatro elizabetano, que não era apresentado no escuro. A música popular do Renascimento só se separava da rua quando o artista era chamado para tocar nas galerias dos palácios. Os primeiros museus de arte europeus empilhavam quadros lado a lado em salas cheias de cores, plantas e móveis.
E hoje, fora do ambiente supostamente “puro” dos museus, teatros e salas de concerto modernos, o mundo acontece e produz ruído. O silêncio perde espaço para os motores, para os celulares, para todos os sons eletrônicos, telas de LCD e propagandas. O silêncio torna-se uma ideia cada vez mais fantástica, enquanto vai se transformando em matéria rara, uma espécie em extinção, uma substância muito difícil de se extrair. O silêncio muitas vezes se confunde com utopia e necessidade de fuga. Quantos retiros não existem hoje prometendo uma experiência reveladora, transformadora, um jejum de silêncio por dias ou semanas em lugares reclusos, fora das cidades grandes? O que é que o som do mundo contém de tão perturbador, de tão tóxico a ponto de se precisar de um “spa” pra se livrar dele e de um cubo branco para deixá-lo para fora?
Em algum lugar entre esses dois mundos — o mundo “limpo” dos cubos brancos e o mundo real, da cidade, do barulho, da multidão e da natureza — perambulam os artistas. Alguns se sentem muito à vontade dentro da pureza do espaço institucional, outros preferem ficar bem longe dela. Os mais interessantes, na minha opinião, são os que querem conciliar esses dois mundos. O que que um artista pode fazer para que se aproximem? Como trazer som para os museus, informalidade para os auditórios e ao mesmo tempo construir galerias efêmeras no espaço público, ambientes de concentração poderosa no meio da cidade? O som é com certeza uma ferramenta com a qual um artista conciliador desafia essas fronteiras e desmonta convenções que muitas vezes se tornam quase óbvias e naturais para o público.
O japonês Aki Onda é um desses artistas conciliadores. Ficou conhecido com seu projeto Cassette Memories no começo dos anos dois mil por utilizar um walkman de fita-cassete para gravar, reproduzir e manipular sons que capta nos mais diversos ambientes e situações, e realiza suas performances também em ambientes de “cubo branco”. É inevitável que ações desse tipo funcionem como uma ponte para trazer o som do mundo como matéria viva para o ambiente do museu, além de estimular o público à contemplação auditiva, um tipo de concentração física e mental que fica enfraquecida por debaixo da intensidade do ruído da metrópole. Por outro lado, na medida em que os museus trazem para suas programações a arte sonora e a música, atenuam toda a intolerância ao barulho do mundo que incorporaram em sua arquitetura e em suas políticas ao longo do séc XX.
Pensando nisso, foi bonito ver as fotos de Aki Onda se apresentando na École Nationale Superieure des Beaux-Arts de Paris em 2013, em uma sala que se chama La chapel des Petits-Augustins. Esse espaço se manteve ao longo de quatro séculos na forma em que o museu de arte costumava ser antes da hegemonia do silêncio e do branco: as paredes cobertas de pinturas dos rodapés ao teto, sem preocupação de espaços de respiro para vê-las individualmente. No meio desse mundo de imagens, Aki Onda fazia soar a também intensa sobreposição de suas fitas-cassetes, cujas gravações, segundo ele, já não se lembra mais onde foram feitas ou sobre do que tratavam.
É tempo de conciliação. A arte sonora e os trabalhos que estimulam a contemplação auditiva parecem ter vindo para que os museus e teatros façam as pazes com a bagunça acústica do mundo real e da vida. É também tempo de apostar mais na sofisticação da sensibilidade do público em relação à sonoridade e a música, como faz o Novas Frequências e tantos outros festivais pelo mundo. O silêncio e a concentração não precisam mais ser uma regra vinda de cima para baixo: na medida em que o público se torna consciente de seu próprio ouvido, é absolutamente capaz de gerar seu próprio conforto mental e seu espaço interno de contemplação. E esse espaço pode ser silencioso, ou não.
Vivian Caccuri realizará uma Caminha Silenciosa exclusiva para o Novas Frequências no dia 03/12.
Inscrições – https://www.facebook.com/