Moinhos de som

Por Ohne Titel

Longe de se afirmar que há uma crise, o que pode ser dito é que a cultura se espalha de forma cada vez mais gasosa. Rarefeita seria perigoso arriscar, mas é indiscutível que esse estado preencha todo espaço que se pode ocupar, como as aulas de física já demonstraram em uma adolescência cada vez mais remota. Adolescência essa que aproveitou-se de toda a brecha necessária para adquirir informações musicais diversas, sempre muito restritas, vindas de revistas ou folhetins estrangeiros, que eram vendidos com dias, e às vezes meses de atraso, a preços pouco acessíveis também.

As famosas “cenas” de outrora hoje inexistem e paradoxalmente (ou seria complementarmente?) preenchem o todo graças a Internet, uma definitiva ferramenta de revolução comportamental, talvez a mais voraz e radical da história da civilização. E enquanto se falar de revolução, e de rupturas, pode se afirmar que há muitas perdas, mas também muitos ganhos. A exemplificar: as possibilidades de absorção são exponencialmente maiores mas a velocidade de esquecimento também. Patti Smith e Robert Mapplethorpe ficaram meses em casa escutando os mesmos poucos discos na vitrola de seus apartamentos e os fizeram clássicos, os que hoje em dia são clássicos, como “A Love Supreme”, de Coltrane ou “Beggar’s Banquet”, dos Stones. Mas são clássicos por conta de uma suposta aura artística superior? Talvez, mas não só. São clássicos porque foram absorvidos, fagocitados, regurgitados, vomitados, reaprendidos, engolidos novamente e assim por diante. São clássicos porque lidaram com o tempo mesmo quando não eram clássicos. Hoje em dia é difícil chamar algo de clássico. Quer dizer, hoje é muito fácil chamar algo de clássico porque são muitos clássicos mas também são muitos clássicos que deixam de ser clássicos assim, com um estalar do clique de um mouse.

Há de se fugir da armadilha purista que cisma em pairar sobre essas teclas. É difícil porque quem escreve é um filho da ruptura e ao mesmo tempo um arauto da revolução. Grande parte do aprendizado musical adquirido por esse aprendiz veio “a moda antiga” e uma outra parte – a que digita em um novíssimo tablet – adquire conteúdo seguindo essa tsunami virtual. Há, de fato, uma dualidade dolorosa que talvez nunca será cessada. Mas o que pode se afirmar é que toda essa virtualidade necessita inevitavelmente de um núcleo físico, palpável, presente, para se perdurar. Esse núcleo não encontra-se em vossos iPods renovados bissextos. Se encontra nas experiências humanas, auditivas, visuais e sensoriais, na troca, no mergulho, na viagem real do momento a ser eternizado. Shows e apresentações ainda são o resquício dessa “fisicalidade”.

O leitor desse texto deve estar se perguntando: “shows são shows, já vi vários e qual seria a razão de estar se pontuando isso?” Sim, o leitor tem certa razão, mas pode ser que não tenha percebido que há um bom tempo a ideia de música e entretenimento é massacrada como uma regra estética, onde talvez a música seja vista como um elemento a mais em uma experiência lúdica, beirando o infantil.

E é esse o ponto da questão. O que se está alertando não é para o conhecimento adquirido, da vivência no eterno replay, mas desse contato com algo que não te chama para ser cliente, mas deixa a porta semi-aberta para você entrar e explorar. Pode ser um território escuro, mas também aconchegante, que clama por intimidade, como algo que precisa de você, mas que vive tranqüilamente SEM você e sua aprovação e mesmo assim, sem estender as mãos, sem chamar para ser seu amigo e pular corda ou descer uma tirolesa entre palcos lotados, sorri e demonstra cumplicidade com a sua experiência, que não passa a ser apenas sua, mas também desse que te convidou. É nesse encontro misterioso e excitante que você percebe que há shows e há shows. E são esses encontros inéditos, íntimos, que a figura incansável e inqueta chamada Chico Dub está interessada em te convidar, porque quer transmitir que o nível de percepção não deve ser massificado como um paralelepípedo de uma estrada centenária, mas sim entendido como um conjunto de tecidos macios, sobrepostos em camadas, que formam um cobertor poroso, tátil, que eletrifica sua derme de forma a convidar ao sonho.

Chico Dub sabe da importância de trazer algo que não seja diferente apenas no formato (pequeno, simples, sem firulas), mas também em seu conteúdo porque entende que a cultura de diferentes países, agora aproximada pela bendita Internet, precisa de um altar físico para se demonstrar e efetuar suas trocas com essa que está aqui nos trópicos. E é a alquimia química da troca de temperaturas, gases, cheiros, sons e batidas que esse caixeiro viajante musical tem a oferecer. A princípio, parece ser algo quixotesco, porque há uma espécie de desconfiança inicial de quem vê essa batalha solitária para trazer o que há de mais desconhecido, criativo, “esquisito”, inaudível e curioso no mundo hoje para a cidade do riso fácil e do tapinha nas costas, a dois quarteirões do ópio ululante das areias de Ipanema (para que sair da praia se está tão bom?). Mas essa desconfiança inicial passa longe do delírio, porque há sim um público sedento que absorveu com intensa velocidade de dobra esse conteúdo primoroso e está disposto a pegar um desvio da areia escaldante para uma experiência inédita no bem ajustado palco do Oi Futuro Ipanema.

É possível que o Festival Novas Freqüências estimule diretamente a lembrança de que há não muito tempo atrás, ou melhor, antes das revoluções virtuais, os núcleos de trocas musicais mais estimulantes fossem as pequenas lojas de disco, não só porque tinham discos (e não haviam quase shows por essas bandas) mas porque seus diminutos espaços acabavam por criar encadeamentos moleculares sólidos e únicos o que antes eram dispersos e gasosos; e que simbolizaram, acima de tudo, a construção nas pessoas que as freqüentavam de algo sempre raro: a individualidade em função da curiosidade.

O festival, como demonstra em seu belo logotipo, parece criar esse link, ainda bem que ziguezagueando, entre aquilo que poderia ir e o que deve permanecer… dentro de você no tempo que for necessário.

Ohne Titel