Novas Frequências #1

Por Chico Dub

“I just want to hear something I haven’t heard before”
― John Peel

O nome do festival é Novas Frequências. Mas bem que poderia se chamar: “Eu só quero ouvir algo que eu nunca tenha ouvido antes.” Ok, a frase é longa. E também não soa bem. Mesmo assim, há algo nessa frase cunhada pelo mestre dos mestres John Peel deveras embutida no conceito do Festival. De 1967 a 2004, esse radialista, DJ e jornalista inglês dedicou sua carreira à pesquisa e a divulgação dos novos sons. Seu lendário programa na Radio 1 da BBC alimentou por 37 anos milhares e millhares de almas, como a minha, sedentas e famintas por uma dieta musical fora dos padrões e esquemas convencionais.

Com a Internet e as tecnologias da informação ao nosso dispor, é perfeitamente possível ouvir música nova, todo santo dia. E sem pagar um tostão por isso! Porém, a grande dificuldade deste mundo pós-tudo é separar o joio do trigo: se por um lado, é mais fácil gravar, produzir, lançar e divulgar qualquer trabalho musical, por outro, é tanta coisa disponível que se perder é o caminho mais comum.

O Festival Novas Frequências foi concebido como um filtro em meio a tanta informação. Mas ele não é um filtro qualquer. De forma alguma. O Novas Frequências é um filtro especial dotado de radares espalhados pelo mundo sondando as novas tendências da vanguarda contemporânea. Se você pensa, age, cria, vive e respira fora do quadrado, o Novas Frequências foi feito para você. Sun Araw, Murcof, Andy Stott, Com Truise e Mark McGuire, os primeiros de muitos artistas que serão escalados para as próximas edições do festival, são verdadeiros achados que queremos compartilhar. Espero que curtam.

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Chico Dub é idealizador e curador do Festival Novas Frequências

Decolando com Andy Stott

Por Mauro Gaspar

Como alguns de alguns dos seus contemporâneos da cena eletrônica, Andy Stott é um impressionista. A música como paisagem sonora define e constrói o som de parte de uma leva de produtores – que vai de Burial a Actress, passando por Gold Panda, Tycho, Forest Swords e The Haxan Cloak, entre outros – que parece realizar, consciente ou inconscientemente, a convergência entre correntes que, desde a década de 1970, sempre estiveram próximas, mas nunca tão associadas: a eletrônica que parte de Kraftwerk e Afrika Baambaata e deságua na pista de dança, a ambient music de Brian Eno e o minimalismo americano de Steve Reich, Philip Glass e Terry Reich.

Desde Merciless, de 2006, Stott transita pelo universo quase infinito dos subgêneros criados pela volúpia reprodutora do mundo pop. Com músicas do naipe de “Come to Me”, “Hertzog” e “Choke”, o produtor inglês apresentou como credencial a capacidade de ser versátil e, ao mesmo tempo, ter uma sonoridade própria, que com os trabalhos seguintes vai ganhar mais força.

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“Bad Landing”, destaque da coletânea de singles EPs Unknown Exception, de 2008, é uma pequena obra-prima de 6m10 que ecoa o dubstep-ambient de Burial, mas que tem personalidade própria com o seu crescendo sutil de batidas compassadas e interferências sintetizadas que criam uma narrativa sonora ímpar.

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Passed Me By é um dos grandes discos de 2011, e certamente a obra mais coesa, autoral e impactante de Stott. Começando pela capa, uma foto de um nativo (um guerreiro Danakil como Cush, o amigo de Corto Maltese?), com suas cicatrizes rituais saltando da foto e marcando nossos olhos. E de “Signature” à faixa-título, essa marca é o passaporte que conduz o ouvinte por uma viagem por terrenos sonoros sombreados e escuros na maior parte do tempo. São vozes, ecos e respirações sobrepostas a uma base rítmica ralentada e marcial como o coração do ouvinte-viajante que flutua pelas paisagens hipnóticas de pérolas como “Execution” ou “New Ground”. Em suma, é um discaço e uma experiência sonora que nos tira de qualquer inércia.

Há quem se assuste com a reprodução infinita de gêneros, subgêneros e microgêneros da música eletrônica. Da minha parte, digo que acho muito bom viver nesse mundo sonoro bastardo e acompanhar os novos rebentos de ouvidos bem abertos.

O Festival Novas Frequências rola no Rio em dezembro. E eu estarei lá.

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Mauro Gaspar é jornalista, pesquisador e editor

Moinhos de som

Por Ohne Titel

Longe de se afirmar que há uma crise, o que pode ser dito é que a cultura se espalha de forma cada vez mais gasosa. Rarefeita seria perigoso arriscar, mas é indiscutível que esse estado preencha todo espaço que se pode ocupar, como as aulas de física já demonstraram em uma adolescência cada vez mais remota. Adolescência essa que aproveitou-se de toda a brecha necessária para adquirir informações musicais diversas, sempre muito restritas, vindas de revistas ou folhetins estrangeiros, que eram vendidos com dias, e às vezes meses de atraso, a preços pouco acessíveis também.

As famosas “cenas” de outrora hoje inexistem e paradoxalmente (ou seria complementarmente?) preenchem o todo graças a Internet, uma definitiva ferramenta de revolução comportamental, talvez a mais voraz e radical da história da civilização. E enquanto se falar de revolução, e de rupturas, pode se afirmar que há muitas perdas, mas também muitos ganhos. A exemplificar: as possibilidades de absorção são exponencialmente maiores mas a velocidade de esquecimento também. Patti Smith e Robert Mapplethorpe ficaram meses em casa escutando os mesmos poucos discos na vitrola de seus apartamentos e os fizeram clássicos, os que hoje em dia são clássicos, como “A Love Supreme”, de Coltrane ou “Beggar’s Banquet”, dos Stones. Mas são clássicos por conta de uma suposta aura artística superior? Talvez, mas não só. São clássicos porque foram absorvidos, fagocitados, regurgitados, vomitados, reaprendidos, engolidos novamente e assim por diante. São clássicos porque lidaram com o tempo mesmo quando não eram clássicos. Hoje em dia é difícil chamar algo de clássico. Quer dizer, hoje é muito fácil chamar algo de clássico porque são muitos clássicos mas também são muitos clássicos que deixam de ser clássicos assim, com um estalar do clique de um mouse.

Há de se fugir da armadilha purista que cisma em pairar sobre essas teclas. É difícil porque quem escreve é um filho da ruptura e ao mesmo tempo um arauto da revolução. Grande parte do aprendizado musical adquirido por esse aprendiz veio “a moda antiga” e uma outra parte – a que digita em um novíssimo tablet – adquire conteúdo seguindo essa tsunami virtual. Há, de fato, uma dualidade dolorosa que talvez nunca será cessada. Mas o que pode se afirmar é que toda essa virtualidade necessita inevitavelmente de um núcleo físico, palpável, presente, para se perdurar. Esse núcleo não encontra-se em vossos iPods renovados bissextos. Se encontra nas experiências humanas, auditivas, visuais e sensoriais, na troca, no mergulho, na viagem real do momento a ser eternizado. Shows e apresentações ainda são o resquício dessa “fisicalidade”.

O leitor desse texto deve estar se perguntando: “shows são shows, já vi vários e qual seria a razão de estar se pontuando isso?” Sim, o leitor tem certa razão, mas pode ser que não tenha percebido que há um bom tempo a ideia de música e entretenimento é massacrada como uma regra estética, onde talvez a música seja vista como um elemento a mais em uma experiência lúdica, beirando o infantil.

E é esse o ponto da questão. O que se está alertando não é para o conhecimento adquirido, da vivência no eterno replay, mas desse contato com algo que não te chama para ser cliente, mas deixa a porta semi-aberta para você entrar e explorar. Pode ser um território escuro, mas também aconchegante, que clama por intimidade, como algo que precisa de você, mas que vive tranqüilamente SEM você e sua aprovação e mesmo assim, sem estender as mãos, sem chamar para ser seu amigo e pular corda ou descer uma tirolesa entre palcos lotados, sorri e demonstra cumplicidade com a sua experiência, que não passa a ser apenas sua, mas também desse que te convidou. É nesse encontro misterioso e excitante que você percebe que há shows e há shows. E são esses encontros inéditos, íntimos, que a figura incansável e inqueta chamada Chico Dub está interessada em te convidar, porque quer transmitir que o nível de percepção não deve ser massificado como um paralelepípedo de uma estrada centenária, mas sim entendido como um conjunto de tecidos macios, sobrepostos em camadas, que formam um cobertor poroso, tátil, que eletrifica sua derme de forma a convidar ao sonho.

Chico Dub sabe da importância de trazer algo que não seja diferente apenas no formato (pequeno, simples, sem firulas), mas também em seu conteúdo porque entende que a cultura de diferentes países, agora aproximada pela bendita Internet, precisa de um altar físico para se demonstrar e efetuar suas trocas com essa que está aqui nos trópicos. E é a alquimia química da troca de temperaturas, gases, cheiros, sons e batidas que esse caixeiro viajante musical tem a oferecer. A princípio, parece ser algo quixotesco, porque há uma espécie de desconfiança inicial de quem vê essa batalha solitária para trazer o que há de mais desconhecido, criativo, “esquisito”, inaudível e curioso no mundo hoje para a cidade do riso fácil e do tapinha nas costas, a dois quarteirões do ópio ululante das areias de Ipanema (para que sair da praia se está tão bom?). Mas essa desconfiança inicial passa longe do delírio, porque há sim um público sedento que absorveu com intensa velocidade de dobra esse conteúdo primoroso e está disposto a pegar um desvio da areia escaldante para uma experiência inédita no bem ajustado palco do Oi Futuro Ipanema.

É possível que o Festival Novas Freqüências estimule diretamente a lembrança de que há não muito tempo atrás, ou melhor, antes das revoluções virtuais, os núcleos de trocas musicais mais estimulantes fossem as pequenas lojas de disco, não só porque tinham discos (e não haviam quase shows por essas bandas) mas porque seus diminutos espaços acabavam por criar encadeamentos moleculares sólidos e únicos o que antes eram dispersos e gasosos; e que simbolizaram, acima de tudo, a construção nas pessoas que as freqüentavam de algo sempre raro: a individualidade em função da curiosidade.

O festival, como demonstra em seu belo logotipo, parece criar esse link, ainda bem que ziguezagueando, entre aquilo que poderia ir e o que deve permanecer… dentro de você no tempo que for necessário.

Ohne Titel

Música de todos os tempos

por Fred Coelho

Antes de tudo, pense que vivemos apenas o presente. Tanto o futuro quanto o passado são meras consequências de nossas possibilidades e limites dos tempos de hoje. O NOVO deve ser entendido como a garantia de um presente em permanente movimento, articulando seus legados e suas posteridades. Novas possibilidades de rever o que foi feito alimentam novas possibilidades do que virá.

A música feita no século XXI não escapa desse dilema. Quando pensamos em NOVAS TENDÊNCIAS da música contemporânea, encontramos artistas que investem exatamente na encruzilhada histórica da música ocidental. Barreiras estéticas do século XX são abolidas no encontro criativo entre gêneros da cultura pop, tecnologias de gravação e experimentações eruditas. Instrumentos e telas tornam-se extensões de um mesmo delírio sonoro através do mundo. Linguagens da música eletrônica dos últimos cinquenta anos são sobrepostas em camadas de recursos técnicos e softwares de última geração. Na música contemporânea, e em todo o mundo, vivemos o NOVO como invenção permanente de todos os tempos. O novo que alimenta as invenções livres, mergulhando artistas em transes místicos-sintéticos de sons atonais e na insanidade do excesso de distorções.

Os desertos musicais hipnóticos de Sun Araw, as camadas e costuras complexas de referências synth pop de Com Truise, o minimalismo clássico e as texturas trágico-sagradas de Murcof, a convivência tensa entre o ruído e a beleza sonora nos transes de Mark McGuire, ou a quase alegria cinza e sombria das batidas de Andy Stott, todos esses sons obscuros e, ao mesmo tempo, iluminadores máximos do que temos pela frente, confirmam que os atuais tempos na música experimental nos transformam em ouvintes privilegiados frente a novas possibilidades digitais. A estrada do futuro não termina, a fonte do passado nunca seca.

Há pelas ruas, cada vez mais, toda uma geração ligada à sonoridades fora das convenções auditivas, sensitivas, tonais ou melódicas de outrora. Um admirável mundo novo musical em uma era de vocabulários robóticos e grooves cerebrais, compostos através das mesas de som analógicas ou virtuais, com seus tantos e vastos canais, filtros e softwares. Música que articula contemplação e beleza – ainda que digital – em alta voltagem.

Se os ouvintes desta nova safra de música eletrônica experimental olharem em volta e não encontrarem eco aos graves que emanam de seus fones e mentes, não se preocupem. Habitar paraísos sonoros artificiais, viver entretido com outras dimensões de tempo e espaço musicais, é um privilégio – ou uma possibilidade – cada vez maior no senso comum da mídia e do público em geral. Neste festival, os pequenos espaços físicos da cidade dedicados ao gênero se expandem velozes nas redes e hubs da terra e das redes sociais. NOVAS FREQUÊNCIAS não é apenas um evento sobre música. É também um evento sobre outro tempo e espaço no Rio de Janeiro do século XXI. Passado, presente e futuro.

Fred Coelho é pesquisador, ensaista e professor de literatura da PUC-RIO.

Equalizando Novas Frequências

por Lucas Santtana

Uma moça de quem gosto muito sempre utiliza a palavra “equalizar” ao descrever a maneira como lidamos com sentimentos, emoções e situações pessoais.

No universo musical, equalizar não está distante disso. Significa atenuar a distorção de um sinal por meio de circuitos compensadores capazes de reforçar a intensidade de algumas frequências e/ ou diminuir outras. É como arrumar as frequências de uma música numa mixagem ou descobrir o lugar de cada instrumento no P.A de um show ao vivo. Simplificando no jargão popular, significa “colocar os pingos nos is”.

E isso pode soar, já que estamos falando de música, como algo distante do nosso dia a dia. Ledo engano.

Quando saimos do cinema e comentamos que Contágio (o novo filme do Soderbergh) tem uma fotografia azulada, estamos, mesmo que inconscientemente, percebendo de que maneira o diretor equalizou as frequências de cor e luz para chegar a um resultado estético, que no caso desse filme em particular, nos traz a sensação de frieza de um eterno hall hospitalar.

O Festival Novas Frequências vem justamente com o intuito de re-equalizar nossos viciados e acomodados ouvidos.

Não se trata de um festival de world music como o Perc Pan. Nem tão pouco de um festival de derivados da música negra como o Back to Black. Muito menos como o Planeta Terra, voltado basicamente para a música pop anglo-norte-americana (outros países pintam às vezes também).

O festival vem ocupar um espaço ainda virgem no Brasil, o de trazer bandas e artistas que trasitam por frequências híbridas, não sendo possível catalogá-los em estilos ou compartimentos isolados. São músicos que assim como Cabral e Armstrong se lançam em naus sem saber com exatidão onde aquilo vai dar.

São seres que habitam o mundo entre uma coisa e outra, a realidade do lá e cá, como o de Laura, personagem de Clarice Lispector no conto “A imitação da Rosa”. O público que for ao Novas Frequências tem que ir com o coração e os ouvidos abertos. Tem que se permitir ouvir o que ainda não viveu. Pois os pingos não estarão no is, mas espalhados por outras letras.

Godard disse que um filme precisa ter começo, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem. Já que estamos no Rio de Janeiro, porque não citar também o nosso síndico Tim Maia, que dizia: “Eu quero graves, médios e agudos!”

Lucas Santtana é músico, cantor e compositor.

Frequências renovadas

por Bernardo Oliveira

“Acredito que o uso dos ruídos (noise) para fazer música continuará e aumentará até alcançarmos uma música produzida com a ajuda de instrumentos elétricos, que disponibilizará para fins musicais quaisquer sons que podem ser ouvidos.”
(John Cage, “The Future of Music: Credo”, in Silence).

O conteúdo premonitório desta frase resume o credo de artistas que, durante o século XX, expandiram a paleta do discurso musical. As experiências de Russolo, Stockhausen, Xenakis, Schaeffer, e do próprio Cage, incorporaram ruídos, sons de máquina, ambiências urbanas, sons inauditos (produzidos por sintetizadores), e até mesmo o silêncio às composições. Extrapolando o sustentáculo da música ocidental – a tríade harmonia-ritmo-melodia –, estes artistas tiveram influencia decisiva sobre a acidentada geografia sonora do século XXI.

Cabe a cada um perguntar a si mesmo: quem se admira hoje com som da guitarra distorcida, outrora vista como uma ressonância alienígena da dominação cultural norte-americana? Quando tomei conhecimento da música eletroacústica e, mais tarde, do noise, fiquei indignado, pois permanecia resguardado na perspectiva confortável da música que me soava familiar. Por que haveria de explorar “a borda”, os limites não só da música, mas do próprio som? Duro aprendizado, o de aprender a receber, interpretar, e até mesmo ter prazer com “quaisquer sons que podem ser ouvidos”…

A relevância do Festival Novas Frequências não é propriamente a de uma amostragem pedagógica, mas, sobretudo, da consolidação de um interesse. Hoje, um número relevante de pessoas sabe que a música não se restringe ao poder inebriante da canção, mas que pode ser elaborada a partir de muitas técnicas, gêneros e procedimentos, soando de muitas maneiras, a partir de interferências diretas na forma como é gravada, executada e reproduzida. Que a música, enfim, explora a materialidade do som, ainda que eventualmente incorporada a gêneros reconhecidos, como o synthpop e o rock psicodélico.

Para conferir uma parcela destes esforços, basta dar ouvidos à produção multifacetada de Cameron Stallones, mais conhecido como Sun Araw; ao dubtechno esfumaçado de Andy Stott; à frieza do balanço sci-fi de Com Truise; às intrincadas texturas eletrônicas criadas pelo mexicano Fernando Corona, que assina como Murcof; e ao ambient/drone turbinado de Mark McGuire, prolífico guitarrista americano, apaixonado pelos sintetizadores alemães dos anos 70. Artistas que dialogam abertamente com o passado, para os quais, porém, o passado não se afigura como um grilhão, mas como lenha para queimar, transfigurar e levar a música adiante…

Bernardo Oliveira é professor de filosofia e crítico de música