Os selecionados para o hacklab

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(Foto de Francisco Costa / Happenings 2015)

Os participantes do hacklab com o Interspecifics Collective já foram selecionados a partir do open call que fizemos. Serão eles: Biônicos, David Charles Cole, Felipe Ridolfi, Gama, Henry Schroy, Negalê Jones, peppe de souza e Re Sil.

Biônicos
http://simbinoise.tumblr.com/
Biônicos é Alberto Harres, Caio Chacal, André Anastácio e Igor Abreu. Os quatro pretendem se revezar na oficina para criar mais possibilidades de sonoridades propositivas, já que cada um trará seus próprios circuitos e equipamentos.

David Charles Cole
David Charles Cole é um australiano que cresceu na Inglaterra e veio para o Brasil em 1994. Produtor e programador de música eletrônica desde os anos 80, ele fez muitas trilhas para instalações e tocou por anos com a Katia B e com o Lucas Santtana.

Felipe Ridolfi
https://soundcloud.com/felipe-ridolfi
Formado em produção fonográfica pela Estácio de Sá e em Filosofia pela UFRJ, trabalha com áudio desde 2006 e nos últimos anos tem feito colaborações com grupos de improviso usando técnicas da música eletrônica e da exploração do som digital.

Gama
https://soundcloud.com/gvmv
Gama é jovem DJ e produtor que busca um som pós-gênero e uma pista desconstruída. Hoje seu live explora os extremos altos da natureza sintética, sonoridades profundas e quebras de ritmo com uns glitches minimalistas, influenciado pelo IDM, pelo Breakbeat e pela musica concreta.

Henry Schroy
http://newritual.com/
Henry Schroy se inspira pela interseção entre improviso e a inteligência artificial – quero criar máquinas que fazem silêncio. Ele trabalha com programação desde a década de 80, para empresas como a IBM, a Reuters e JPMorgan Chase, o que lhe traz certa experiência em design de circuitos fechados e engenharia sonora.

Negalê Jones
Músico e artista Sonoro, ministra uma série de workshops de arte, ciência e tecnologia, onde desenvolve, por exemplo, instrumentos de papelão e componentes eletrônicos reciclados. Também trabalha há anos com cenografia interativa e trilha sonora.

peppe de souza
peppe de souza é engenheiro de som e produtor, com alta curiosidade científica e volição artística. Agrada-o mexer com síntese, tocar guitarra e usar a voz, mexer e brincar com timbres, relações de volume, sons acidentais e generative music.

Re Sil
http://www.resil.co/
Artista audio-visual de 29 anos, formado em Comunicação Visual e altamente investido em técnicas exploratórias e multidisciplinares de arte experimental e colaborativa. Busca, através de óticas não-convencionais, descobrir e produzir ferramentas para a construção de sistemas concisos e encadeados de expressão humana e derivativa.

“Universo em expansão”, de Felipe Vaz

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A qual nicho específico atende o Novas Frequências, reunindo improvisação livre, sons eletrônicos e experimentais, noise, subgêneros do techno e do ambient, arte sonora e por aí vai? Como encaixar este leque em nosso modelo mental de festival de música, que normalmente atende uma, ou apenas algumas estreitas vertentes da produção musical? Independente de gêneros e estilos, ao recapitular a história do festival, podemos organizar o que ele nos trouxe até aqui em torno de duas grandes linhas que não se excluem mutuamente, e que serão possivelmente mais úteis que gavetas de estilos.

A primeira podemos ligar a uma ideia do crítico de música e arte alemão Diedrich Diederichsen (da lendária Spex), e está presente desde a primeira edição. Ao tratar da arte contemporânea, ele aponta que não interessa mais hoje o ataque ou o questionamento às instituições (tão comum no sistema das artes visuais desde os 1970), e sim a criticalidade do trabalho. Com isso, se refere àqueles artistas que, através de um cuidado crítico em relação a sua própria produção, levam o conhecimento humano a um novo ponto, até então desconhecido: a própria geração do novo, por expansão ou por aprofundamento de seu campo de problemas. É um correlato do modus operandi da ciência, onde cada pesquisa em um nicho estreito estabelece um avanço muito localizado no perímetro do campo mais amplo do saber sobre o mundo, expandindo o conhecimento humano como um todo. Na música, isso corresponde àqueles que criam novas formas sonoras ou são mais detalhistas do que seus antecessores, que empurram para mais além as fronteiras que antes conhecíamos na produção da música – nos confrontam com uma música que antes não poderíamos imaginar, por mais que hoje qualquer som possa ser admitido como música. É o alargamento das bordas do campo do sonoro, de tudo o que se pode escutar.

Já a segunda linha seria a de uma arte sônica “não-coclear”, conforme formulada pelo pesquisador e artista sonoro Seth Kim-Cohen. A ela corresponde um transbordamento do som, à explosão do próprio limite do sonoro. O termo joga com a “arte não-retiniana” imaginada por Duchamp: se por um lado as artes visuais desde o final da década de 1960 deslocaram para o segundo plano a própria visualidade para privilegiar a produção de conceitos, no campo da música e do sonoro isso não ocorreu. Isso não quer dizer que não haja música conceitual, e nem que não houve músicos que privilegiaram o pensamento, mas que os aspectos conceituais não ocuparam, na música, o espaço que ganharam nas artes visuais.

Podemos partir do que não é arte não-coclear para explicá-la. Pierre Schaeffer, pai da musique concrète, pensa, promove e cria a possibilidade de uma enorme expansão do campo sonoro, incorporando todo tipo de som ainda na metade do século passado. Em seu método de composição, parte da possibilidade tecnológica do registro de sons para separá-los do mundo e usá-los como matéria-prima disponível para a composição. Para chegar a tal, para permitir a apreciação do “objeto sonoro”, unidade fundamental de sua linguagem e seu pensamento musical, Schaeffer propõe uma escuta reduzida, baseada na remoção de toda e qualquer referencialidade externa do som: este deve ser reproduzido por alto-falantes, isolado de qualquer estímulo visual ou outra referência. Esta reprodução não deve lembrar, ao ouvinte, o instrumento ou a situação que produziu o som na vida real, apenas deve apresentar a experiência auditiva descolada de um referente – a característica fundamental do objeto sonoro é a de um som idealmente “puro”, afastado de qualquer relação com o mundo externo. Ele é registrado e controlado, asséptico, disponibilizado em uma vitrine no qual se conjuga exclusivamente com outros sons equivalentemente isolados do mundo. Nesta medida, Schaeffer configura, a despeito de aumentar enormemente o vocabulário musical, o oposto de uma arte sônica não-coclear: direciona a atenção exclusivamente à percepção auditiva, e exclui todo o mais.

Ainda sob esta ótica, John Cage configuraria um ponto de inflexão, dado que sua contribuição pode ser lida de duas formas divergentes. Por um lado, como Schaeffer, expande a paleta incorporando todo tipo de som à música – e o mítico 4’33’’ é frequentemente tomado como exemplo disso. Mas é possível interpretar a mesmo peça por outra chave, sem excluir a primeira. Cage também aponta, ali, para tudo que NÃO é o próprio som: a partitura, o piano, o pianista, a sala de concerto, o público, as cadeiras, o pigarro do espectador… em resumo, para todo o dispositivo, para o quadro da situação em que se produz a experiência da música. Não por acaso, a influência de Cage é apontada frequentemente como sendo seminal para o caminho conceitual trilhado pelas artes visuais nos últimos 50 anos.

Uma ilustração da experiência não-coclear é o vídeo Guitar Drag (2000), de Christian Marclay. Nele, uma guitarra é amarrada a uma camionete com um amplificador em sua caçamba. Arrastada por quilômetros pelo Texas, a guitarra é pouco a pouco destruída, produzindo uma enorme variedade de sons distorcidos pelo caminho. O som em si é interessante, mas o processo empregado na geração do som é mais relevante. Quando, no entanto, nos deparamos com a informação de que, meses antes do registro do vídeo, uma pessoa fora arrastada até a morte por uma camionete naquelas mesmas estradas por questões de racismo, o som é atropelado e potencializado por camadas de significado muito mais urgentes.

De diferentes formas, este “apontar para fora do som” é o que fazem Tunga, Quiet Ensemble, Marco Scarassatti, Interspecifics Ensemble, Pierre Bastien, Philip Jeck, Aki Onda, Vivian Caccuri e o Chelpa Ferro. Em diferentes medidas, apresentam sons, mas ao contrário do som puro, é o som contaminado, indissociável das condições que determinam sua produção ou sua recepção – algumas vezes, importará mais o lugar no mundo para onde aquele som aponta do que a própria audição, puramente coclear, do som.

O universo das sonoridades não pára, segue em constante e acelerado crescimento. Que venham a nós mais frequências e ideias que permitam escutar esta expansão, sejam elas alargadoras do campo do sonoro, ou estabelecedoras de novas relações com as dimensões da experiência que estão além do som.

Falta uma semana!

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“Recapitular. Repetir. Resumir. Voltar. Compendiar. Relembrar. Recordar. Rememorar. Reviver. Compilar. Condensar. Recapitular.

RECAP.

Chegar até aqui não foi fácil. Mesmo. Nadando contra a corrente, lutando contra burocracias, enfrentando desconfiança, ignorando modismos, passando por crises financeiras e desvalorização do câmbio… Quando o festival foi desenhado no papel, em 2010, inocentemente acreditava que as coisas se tornariam mais fáceis com o passar dos anos. Ledo engano. A pressão em ampliar e melhorar o Novas Frequências aumenta significativamente todo ano. Sempre é mais difícil. Sim, só agora a ficha caiu: sempre será mais difícil. E que bom que seja desta forma, na verdade. Acomodação é algo que definitivamente não existe no vocabulário do Novas Frequências.

Sob o tema central, “RECAP”, o festival busca recapitular alguns dos conceitos, recortes e destaques das edições anteriores. Sem repetir nenhum artista no line-up, o festival realiza um reflexo histórico de tudo que já fez até hoje, dialogando assim com o seu passado em busca de criar um nexo, de fechar um ciclo para em seguida apontar para o futuro. Em outras palavras, o festival amplia as discussões trazidas anteriormente trazendo novos artistas que possuem maneiras distintas de lidar com os temas levantados no passado. Uma espécie de best of. Assim, ao mesmo tempo em que possibilitamos que o público que não conhecia o festival em 2011 ou 2012 tome contato com esses universos específicos, também nos permitimos nos aprofundar um pouco mais em assuntos que ainda permanecem relevantes e atuais.

Alguns exemplos: transcendência e iluminação (2011); forte presença autoral feminina na nova cena eletrônica/experimental e o pop como experimento (2012); a síntese-resíntese de materiais pré-existentes, o terror/horror e a repetição como meio de criar abstração (2013); estudos sobre o continente africano, a cidade do Rio como laboratório de pesquisa, caminhadas sonoras e outros sons de velhos instrumentos (2014).

São muitos destaques nesta 5ª edição. Desde o nascimento, o Novas Frequências sempre esteve muito mais ligado à arte contemporânea do que à música enquanto entretenimento. A relação com a arte sonora, com a música de invenção e com a performance, embora possa ser perfeitamente abrigada num palco, não se limita a ele. Desta forma, em sua 5ª edição, o festival expande mais uma vez seu formato em busca de uma ampliação de seus espectros. Ao mesmo tempo em que avança cada vez mais no campo da sound art, o Novas Frequências 2015 conversa com outros suportes artísticos, abrigando propostas audiovisuais, instalativas e até mesmo fotográficas. No galpão/atelier do artista plástico Tunga (“Laboratório Agnut”), o festival realiza duas ações que terão a mesma duração do festival. No amplo espaço localizado na Barrinha, as fotografias de Fabio Ghivelder utilizadas na identidade visual do festival serão apresentadas em uma exposição. E o próprio Tunga, um dos mais conhecidos nomes da arte brasileira em todo o mundo, irá expor uma “instauração” batizada “Delivered in Voices”. Diariamente, artistas e músicos experimentais de vários backgrounds irão interagir com esta obra sonora inédita e interativa: Luísa Nóbrega e Barrão, Ava Rocha & Eduardo Manso, DEDO, N-1, Lilian Zaremba & Fred Paredes, Dissonâmbulos, Meteoro, Thingamajicks & Marcelo Mudou, Lucas Santtana e Félicia Atkinson. Na Audio Rebel, principal ponto da cidade no diz respeito a uma música mais desafiadora e instigante, o festival irá apresentar uma mostra com 6 longas, entre documentários, filmes de arte e experimentos sonoro-imagéticos.

A nova casa de shows e festas Antonieta, na Lapa, é o cenário perfeito para uma festa que investiga a África e suas diásporas. The Bug ft Miss Red é Jamaica via Brixton: toda a tradição do reggae e do dub através do filtro urbanóide e hooligan inglês. Já a dupla Auntie Flo & Esa mergulha fundo em ritmos latinos e africanos apimentando sua mistura de house e techno. Do Rio, a parceria entre Marginal Men + DJ Sydney atualiza o funk para o século 21. Também carioca, Daniel Lucas através da alcunha Pigmalião, funde referências regionais e raízes latino-americanas com sons específicos de outras partes do mundo. Vale mencionar que Kevin Martin, o “The Bug”, também toca no Novas Frequências com o seu trio King Midas Sound, um projeto de graves pesados, psicodelia, lovers rock e hip-hop abstrato.

Mais uma vez, o uso inovador de instrumentos convencionais retorna como recorte ao Novas Frequências, mostrando que o interesse do festival reside muito mais no como do que no quê. Dawn of Midi é um trio baseado no Brooklyn de origem marroquina, indiana e paquistanesa que utiliza instrumentos acústicos para soar como música eletrônica. De Portugal, o Timespine usa um dobro, um zither e uma guitarra baixo. Fazem uma espécie de folk com elementos de música contemporânea e improvisação. Inédito no Rio de Janeiro, Juçara Marçal & Cadu Tenório apresentam seu primeiro trabalho em conjunto: “Anganga” é uma combinação da produção ruidista de Cadu com as reflexões de Juçara sobre as tradições afro-brasileiras. A performance batizada “Cavulcão”, do paulistano m.takara (também inédita no Rio), subverte a maneira como o tradicional cavaquinho é tocado.

A experiência com o som é expandida de uma forma nunca antes apresentada no festival. A dupla italiana Quiet Ensemble traduz instrumentos musicais clássicos através de recursos luminosos, estroboscópicos e teatrais com a função de formar uma verdadeira orquestra elétrico-óptica de frequência, calor e ruído. A relação entre o som e a arquitetura, mais especificamente a obra do maior dos maiores Oscar Niemeyer, é o tema da residência artística do escocês Trudat Sound. No primeiro hacklab (ou laboratório colaborativo) desenvolvido pelo festival, a dupla mexicana Interspecifics Collective, especialista em sonificação, vai coletar bactérias e sedimentos de diferentes praias do Rio para criar uma sinfonia de sons e ritmos não-humanos junto a artistas locais. Há ainda os inventores Pierre Bastien, Marco Scarassatti e Paulo Santos. O francês Bastien é o maestro por trás da “Mecanium”, uma orquestra de peças musicais automatizadas construídas com partes mecânicas recicladas. Scarassatti vai apresentar no festival a obra “Novelo Elétrico”, uma construção poética de espaços sonoros tendo como matriz a improvisação e a gravação processada com instrumentos musicais não usuais, inventados e objetos situados entre a música e as artes visuais. Scarassati também apresenta “Deriva Sonora”, uma oficina em que a música se constrói a partir da escuta do ambiente e a exploração sonora de suas características acústicas. Paulo Santos esteve durante mais de três décadas ao lado da hoje extinta oficina instrumental Uakti. Sua apresentação em conjunto com o sexteto paulistano de pós-rock Hurtmold é inédita no Rio.

A parceria do British Council com o Novas Frequências se confirma mais uma vez: é o terceiro ano consecutivo em que a organização internacional do Reino Unido para relações culturais e oportunidades educacionais é parceira institucional do festival. Graças a um apoio conjunto do British Coucil com o Creative Scotland, o Novas Frequências realiza em 2015 residências artísticas com os já mencionados Trudat Sound e Auntie Flo. No caso deste último, o objetivo é encontrar artistas locais e discos antigos para a gravação de músicas inéditas com inspiração afro-brasileira. A presença no festival dos artistas King Midas Sound e The Bug também foi viabilizada graças ao British Council.

Ainda com um recorte mais geográfico, em parceria com o Consulado Geral da França no Rio de Janeiro, o Novas Frequências desenvolveu um programa com dois artistas franceses e dois brasileiros. Félicia Atkinson é uma artista visual e sonora que usa e abusa de delays, loops e saturações em sua música-poesia concreta. Há ainda os já mencionados Pierre Bastien, m. takara e Marco Scarassatti.

Depois de trazer, em edições anteriores, alguns dos principais nomes da eletrônica experimental – artistas do porte de Tim Hecker, Ben Frost, Vladislav Delay, Actress, pole, Mark Fell e Keith Fullerton Whitman – chegou a vez de apresentar Mika Vainio, finlandês com uma sonoridade única entre o drone abstrato e o techno vanguardista. Outro importante destaque nesta seara eletrônica não-interessada na pista de dança é Tyondai Braxton, ex-guitarrista, tecladista e vocalista da banda de rock vanguartista Battles. E também os brasileiros Acavernus (Paula Rebellato) e Thingamajicks (Vinicius Duarte), um dos selecionados para a Red Bull Music Academy 2015, que este ano seu deu em Paris.

Pela primeira vez o festival possui tantos brasileiros em sua escalação. São ao todo 26 nomes (contra 16 artistas internacionais), reforçando o excelente momento em que vive a nova cena de música experimental/eletrônica do país. Reforçando ainda mais a ligação do festival este ano com as artes audiovisuais, o Bemônio, à convite do Novas Frequências, retrilha o filme polonês de terror e reflexão metafísica “Madre Joana dos Anjos”, de Jerzy Kawalerowicz (vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 1961).

Finalmente, a parceria inédita no Brasil entre Phill Niblock e Thomas Ankersmit. Niblock é uma autêntica lenda do experimentalismo norte-americano. Da mesma escola minimalista de Steve Reich, Terry Riley e Philip Glass, Niblock, que também é cineasta, cria drones microtonais, monolíticos e digitalmente processados: o resultado é a ausência completa de melodia ou ritmo. Ankersmit é mais eletrônico. Fenômenos acústicos, como reflexões de som, vibrações infrasônicas, emissões otoacústicas e projeções altamente direcionais são algumas das suas especialidades.

RECAP. Ao adotar um tema com estas características, é como se passássemos uma régua em tudo aquilo que já fizemos. Ou seja, depois de recapitular, só pode vir (ainda mais) novidade daqui para a frente. A 6ª edição do Novas Frequências promete.

PS: Obrigado Tathi, Batman, Arlete e Roberto.”

Chico Dub
Curador e diretor artístico do Festival Novas Frequências

 

“O conflito é o começo da conscientização”, de Tim Terpstra

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Ao pensar no tema de 2015 do Novas Frequências, RECAP, a primeira coisa que me vem à cabeça é o interessante conflito que se encontra dentro do significado de recapitulação. Pode ser sobre brevemente recomeçar, ainda que em outro contexto possa ser sobre dar uma nova forma ou expressão a algo. Eu acho que a última definição é o caso da maioria dos festivais independentes operando na área de artes e música emergentes. Recapitular normalmente envolve não apenas refletir sobre o que aconteceu, mas levar essas reflexões para o presente. A reflexão raramente torna-se completamente isolada das tendências e desenvolvimentos atuais. Ao refletir, eventos e estados atuais muitas vezes fazem parte do processo de rememoração.

Isso também tornou-se aparente quando fui convidado para escrever algo sobre tempo, quando TodaysArt (festival anual de arte contemporânea e cultural emergente em Haia, que acabou de comemorar o seu 11o aniversário) chegou ao seu 5o aniversário. Esse é um ponto vantajoso e interessante, principalmente porque você está olhando para trás para um momento específico no qual nós refletimos nos cinco anos antes daquele momento. É inevitável que rever esse momento agora, em 2015, antecipe novas conotações e traga novas experiências também.

Para o TodaysArt, 2009 foi um ano de conflito. O tema e a programação foram inspirados pela psicanalista Junguiana M. Esther Harding, que declarou que “conflito é o começo da conscientização”. O tema foi não só refletido na programação, que consistia em muitos artistas e produções únicas de uma imensidão de gêneros, mas também na identidade do festival e da cidade na qual operou. Para nós, internamente, 2009 foi a edição na qual nós tivemos que reduzir as nossas ambições e lidar com diversos cortes de orçamento, levando a conflitos internos. Da perspectiva da cidade, nós pensamos que era urgente reagir à identidade auto-proclamada de Haia como a Cidade Internacional da Paz, Justiça e Segurança em um momento em que o mundo inteiro parece estar em conflito. Nós estávamos interessados no que aconteceria se você introduzisse o conflito à cidade. Nossa equipe artística e de design desenvolveu uma campanha do festival que fazia pensar em uma simples questão: como as pessoas iriam reagir quando fossem expostos a uma série de pôsteres e vídeos retratando ambientes urbanos de Haia bombardeados e em chamas, e retratando imagens de ditadores e mártires fictícios no meio da cidade deles. O tema do conflito tornou-se uma realidade para gente, mesmo levando ao aprisionamento do nosso diretor e interrogações ao nosso time pelo departamento anti-terrorismo. O tema nunca foi escolhido para incitar conflito, mas simplesmente chamar atenção para o assunto e levantar questões. Acabou que os parâmetros determinando o que é aceitável e o que não é são, no mínimo, vagos e, talvez, questionáveis. O fato da nossa campanha ter sido interpretada como uma séria ameaça salientou a necessidade de um debate. Por fim, as ações foram questionadas em políticas nacionais e locais e a campanha foi nomeada para o Dutch Design Award.

Olhando para trás antes de 2009, nós realizamos quatro edições das quais temos muito orgulho e, mesmo agora, ainda incluem alguns dos nossos projetos mais bem-sucedidos já realizados. Eu acredito que possa ser dito que cada uma dessas edições não poderia ter sido realizada se não fosse a edição do ano anterior.

Quando se trabalha em um festival anual, faz sentido recapitular para construir um enredo consistente. Muitas decisões a respeito das novas atividades arrastam experiências anteriores, o que pode definir essas decisões em grande parte. No entanto, é importante achar o equilíbrio perfeito entre abraçar experiências passadas e deixar para trás o passado completamente. Por exemplo, reintroduzir elementos bem-sucedidos já apresentados no festival em uma nova edição pode funcionar bem para a organização, para o público e/ou para os artistas, mas também pode tirar a oportunidade de apresentar novos elementos e continuar experimentando e inovando. Para nós, montando o festival como um laboratório vivo permanece como um dos elementos-chave lidar com o passado, presente e futuro. Permitir aos artistas que experimentem na frente do público, trabalhar com convites abertos aos artistas para decidirem o que eles gostariam de apresentar (ao mesmo tempo em que nos comunicamos de perto com eles).

Se você quer mostrar o que realmente está acontecendo nesse momento, você tem que se manter flexível sem ignorar nem o passado nem o futuro. TodaysArt não é um festival retrospectivo ou um festival focado no futuro, mas nós evitamos idéias que lidem com perspectivas históricas e/ou cenários futuros.
Muitos festivais operam retrospectivamente, TodaysArt (e muitos festivais parceiros) buscam refletir o presente. É um tanto quanto desafiador criar uma programação que é e continuará relevante. E muitas vezes, de fato, não é, mas tudo bem. Se você gostaria apenas de ir a eventos retrospectivos, não haverá muita criação ou conexões com atualidades e tópicos, contextos e circunstâncias urgentes.

É interessante ver que festivais que operam dentro de circunstâncias, localizações geográficas e contextos muito diferentes compartilham muitas similaridades nas suas abordagens. Olhando especificamente para o Novas Frequências, eu profundamente respeito os esforços deles, pelos últimos cinco anos, por ficarem dedicados ao desenvolvimento e apresentação de formas experimentais e novas, pois não é algo comum e certamente fácil de alcançar.

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When thinking about the Novas Frequências 2015 theme, RECAP, the first thing that comes to my mind is the interesting conflict that lies within the meaning of recapitulating. It can be about briefly restating, yet in another context it can be about giving new form or expression to something. I think the latter is the case for most independent festivals operating in the field of emerging arts and music. To recapitulate often involves not solely reflecting on what happened, but to take these reflections into the current. Reflection rarely becomes fully detached from current tendencies and developments. When reflecting, current events or states often become part of the process.

This also became apparent when I was asked to write something about the time when TodaysArt (an annual festival for contemporary art and emerging culture in The Hague which has just celebrated its 11th anniversary) made it’s 5 year anniversary. This is an interesting vantage point mainly because you’re looking back to a specific moment in time on which we reflected on the five years before that moment. It is inevitable that looking back to this moment now, in 2015, brings forward new connotations and takes in new experiences as well.

For TodaysArt, 2009 was a year of conflict. The theme and the program for the 2009 edition was inspired by the Jungian psychoanalyst M. Esther Harding, who stated that “conflict is the beginning of consciousness”. The theme was not only reflected in the program which consisted of many artists and unique productions from a multitude of genres, but also in the identity of the festival and the city it operates from. For us internally, 2009 was an edition in which we had to scale back our ambitions and dealt with several budget cuts, bringing forth internal conflicts. From the city’s perspective, we thought it was urgent to react to the self proclaimed identity of The Hague as International City of Peace, Justice and Security at a time in which the whole world seemed to be in conflict. We were interested in what would happen if you would introduce conflict in the city. Our designers and artistic team developed a festival campaign which brought to mind at least one simple question: how would people react when they’re exposed to a series of posters and videos portraying bombed and burning urban environments in The Hague, and portraying images of fictional dictators and martyrs in the midst of their city. The theme of conflict became a reality for us, even leading to the imprisonment of our director and interrogations of our team by the anti-terrorism department. The theme was never chosen to initiate conflict, but about simply drawing attention to the subject and posing questions. It turned out the parameters determining what is acceptable and what is not are at best vague, and perhaps questionable. The fact that our campaign was interpreted as a serious threat underlined the necessity for a debate. Eventually the actions even were questioned in local and national politics and the campaign was nominated for a Dutch Design Award.

Looking back further beyond 2009, we’ve realized four editions of which we’re very proud, and which even now still included some of our most successful projects ever realized. I think it can be said that each of these editions couldn’t have taken place if not preceded by the edition the year before.

When working on an annual festival, it makes sense to recapitulate in order to build a consistent storyline. Many decisions concerning new activities drag along previous experiences which can define these decisions to a large extent. However, it’s important to find a right balance between embracing past experiences and letting go of the past completely. For example, reintroducing previously successful elements of the festival in a new edition might work good for the organization, the audiences and/or the artists, but might also very well take away an opportunity to present new elements or to keep experimenting and innovating. For us staging the festival as a living lab remains one of the key elements to deal with the past, current and future. Allowing artists to experiment in front of an audience, working with open invitations for artists to decide what they’d like to present (though still closely communicating with them).

If you want to present what is actually happening at this moment, you have to remain flexible without ignoring either the past or the future. TodaysArt is not a retrospective festival or a festival focused on the future, but we never avoid ideas that deal with historic perspectives and/or future scenario’s.

Many festivals operate retrospectively, TodaysArt (and a lot of other partner festivals) aim to reflect on the present. It’s quite a challenge create a program that is and will remain relevant. And sometimes it indeed doesn’t, but that’s okay. If you would only have retrospective events there wouldn’t be much creation or connections made to actualities and urgent topics, contexts and circumstances.

It’s interesting to see that festivals that operate within very different circumstances, geographical locations and contexts share so many similarities in their approach. Specifically looking at Novas Frequências I deeply respect their efforts, for five years now, to stay dedicated to the development and presentation of experimental and new forms, as it’s not common and certainly not easy to accomplish.

“Counterflows five years on”, de Alasdair Campbell

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De uma certa forma, o Counterflows acabou de começar. Demora pelo menos cinco anos para que algo como o Counterflows se estabeleça e para que um festival comece a ter uma identidade que ressoe pelo cenário cultural de forma significativa. A questão é, se o Counterflows acabasse amanhã, haveria música? Claro que sim, mas eu acredito que o Counterflows, durante os últimos cinco anos, consguiu reacender o espirito e a atitude que estavam começando a murchar na cena do Reino Unido. O Counterflows, naturalmente, não existe em um vácuo, graças a Deus. Ele tem a sua raiz no que vem acontecendo na Escócia nos últimos vinte anos. Para “recapitular”, como sugere o tema do Novas Frequências desse ano, o Counterflows continuou o legado do Le Weekend Festival que começou em 1998 por Jackie Shearer e Ed Baxter, esse último da Resonance FM, em Londres, alguém que ainda defende os excluídos na cultura. Le Weekend poderia discutivelmente ser considerado como o primeiro festival de musica experimental no Reino Unido. Foi onde o David Keenan da The Wire defendeu e, com a ajuda de Jackie e, mais tarde, de mim, introduziu ao Reino Unido um leque inteiro de artistas maravilhosos como Keiji Haino, Borbetomagus, Otomo Yoshihide, Hamid Drake, David S Ware, Dread Foole, The Dead C, … a lista é extensa. Por uns bons 10 anos, a Escócia viu o florescimento de festivais visando novas possibilidades em música e arte – Instal, Kill Your Timid Notions, Subcurrents, Triptych. Todos esses festivais compartilhavam um sentimento de aventura. Counterflows começou através de uma conversa entre eu e o Hamish Dunbar do Café Oto em Londres, a idéia era que nós achávamos que o momento era aquele para criar algo que poderia estender o legado desses festivais e gerar a ambição de criar novas experiências para um publico que anseia por elas e está aberto para o desafio do novo.

Desde o começo, o Counterflows teve um alcance internacional, e, de fato, no nosso primeiro ano, o festival foi realizado em Berlim, Londres e Glasgow. Mas a sua perspectiva foi sempre de equilibrar o internacional com a base, a base onde coisas excitantes acontecem. Counterflows sempre será sobre apoiar artistas emergentes, mas também que esse apoio os inspire a explorar a música ainda mais e, bravamente, correr riscos. Counter-flow (contra-fluxo), na verdade, significa um movimento de cultura para o bem ou para o mal. Counterflows, através da musica e da arte, está interessada na ideia de movimento de cultura e o que isso significa para as nossas comunidades ao abraçarmos ou rejeitarmos outras culturas.

Então cinco anos se passaram, cinco anos se empenhando – é esse um momento significante? Para mim, há a satisfação de que o apoio pelo que estamos fazendo está crescendo e o público entende isso. Nós conseguimos muito nesse curto período de tempo. Counterflows comissionou oito novos trabalho em suas últimas quatro viagens, incluindo o Candy Shop da Lina Lapelyte saindo para se apresentar em várias versões por toda a Europa. A nossa série de artistas convidados têm capturado a imaginação, destacando o trabalho de, não tanto artistas negligenciados, mas artistas que se encaixam no ethos do Conterflows e merecem atenção. Joe McPhee e Richard Youngs preencheram esse papel brilhantemente nos últimos dois anos, e com Zeena Parkins posicionada para 2016, nós aguardamos ansiosamente, com antecipação, o que vai acontecer. A série de residências do Counterflows montada com o Instituto Goethe tem sido satisfatória de se ver desenvolver, oferecendo a artistas da Alemanha e da Escócia o espaço e apoio para ver a prática deles em um contexto de colaboração. Um aspecto do Counterflows, pelo qual, nós somos particularmente inspirados, é que o que fazemos tem um aspecto social muito grande. Parece ser um requerimento básico para um festival, mas, de alguma forma, muita vezes se perde em uma espécie de auto-importância. O Conterflows, depois de cinco anos, provavelmente funciona, porque o público, artistas, voluntários, equipe, casas de shows, estão todos envolvidos no desenvolvimento dele, que é primordialmente sobre todo mundo. Mas há muito a ser feito. Uma das nossas ambições para os próximos cinco anos é trabalhar com mais pessoas do mundo inteiro. Encontrar e compartilhar ideias e similaridades em ambições com o Novas Frequências é um passo na direção certa. Sempre foi uma surpresa para mim quando converso com pessoas de diferentes países sobre musica, o quão similar são as nossas ideias. Essa é uma grande força a ser tirada. Bombardeados constantemente, nas nossas rotinas diárias, pelo o que o Martin Amis uma vez cunhou como Moronic Inferno, é sempre uma fonte de otimismo saber que há pessoas em todo o nosso pequeno planeta determinadas a lutar contra a maré da mediocridade.

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In some respects Counterflows has just got started. It takes at least five years to get something like Counterflows established and for the festival to begin to have an identity that resonates across the cultural landscape in any sort of meaningful way. The thing is, if Counterflows was to cease tomorrow, would there be music? Of course there would, but I believe that Counterflows has in the course of the last five years managed to rekindle a spirit and attitude that was beginning to wane across the UK scene. Counterflows, naturally, does not exist in a vacuum and thank goodness for that. It has its roots in what has been happening in Scotland over the last twenty years or so. To take Novas Frequencias theme of Recap, Counterflows continues the legacy of the Le Weekend festival in Stirling that was started in 1998 by Jackie Shearer and Ed Baxter, Ed Baxter of Resonance FM in London, someone who still champions the Leftfield in culture. Le Weekend could arguably be thought of as the first experimental music festival in the UK. It is where the Wire’s David Keenan championed and with the help of Jackie and latterly myself introduced to the UK a whole host of amazing artists such as Keiji Haino, Borbetomagus, Otomo Yoshihide, Hamid Drake, David S Ware, Dread Foole, The Dead C, … the list is extensive. For a good ten years Scotland saw the flourishing of festivals looking at new possibilities in music and art – Instal, Kill Your Timid Notions, Subcurrents, Triptych. All these festivals shared a sense of adventure. Counterflows was started through a conversation between myself and Hamish Dunbar at Café Oto in London, the idea being that we thought the time was right to create something that could extend the legacy of these festivals and inspire the ambition to create new experiences for an audience that is hungry for and open to the challenge of the new.

From the out-set Counterflows had an international scope and in fact in our first year the festival took place in Berlin, London and Glasgow. But its outlook was always to balance the international with the grassroots, the grassroots where exciting things begin. Counterflows is always going to be about supporting emerging artists but also with this support to inspire them to stretch the music further and bravely to take risks. Counter-flow actually means the movement of culture for good or bad. Counterflows, through music and art, is interested in this idea of the movement of culture and what it means to our communities as we embrace or reject other cultures.

So five years down the line and five years in to this endeavour – is this a significant moment? For me there is satisfaction, in that, support for what we are doing is growing and the audiences get it. We have achieved quite a lot in this short time. Counterflows has commissioned eight new works in its last four outings with Lina Lapelyte’s Candy Shop going on to perform in various versions all over Europe. Our featured artist series has captured the imagination, highlighting the work of, not so much neglected artists, but artists that fit the Counterflows’ ethos and deserve some attention. Joe McPhee and Richard Youngs have filled this role amazingly in the past two years and with Zeena Parkins in place for 2016 we await eagerly with anticipation what will happen. Counterflows residency series set up with the Goethe Institute has been pleasing to watch develop offering artists from Germany and Scotland the space and support to look at their practice in the context of collaboration. One aspect of Counterflows that we are particularly driven by is that what we do has a hugely social aspect to it. It seems a basic requirement for a festival but somehow it often gets lost in a sort of self-importance. Counterflows, after five years, possibly works, because, audience, artists, volunteers, staff, venues, are all involved in its development and it is ultimately about everyone. But there is a lot more to do. One of our ambitions for the next five years is to work with more people across the globe. Finding and sharing ideas and the similarities of ambitions with Novas Frequencias is a step in the right direction. It always comes as a surprise to me when I talk with people in different countries about music how similar our ideas are. This is a great strength to be pulled upon. Bombarded constantly in our daily grind by what Martin Amis once coined as the Moronic Inferno it is always a source of optimism to find that there are people all over our small planet determined to fight against the tide of mediocrity.

“Recapping”, de Ramon R. Duarte

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O renascimento de uma cena musical forte, que até então parecia apática e sem voz, assim como o estímulo, ainda que introvertido, do interesse popular nos artistas e bandas apresentados, até finalmente provocar uma verdadeira reforma nas formas de se abordar a produção de um festival (com debates, oficinas, residências artísticas…). Em sua breve história, o que o Novas Frequências acabou criando foi uma ágil e inédita relação entre espectador e artista, um vínculo que, anteriormente, se resumia apenas ao simplório dueto espetáculo e entretenimento. O festival se diferenciou (e se diferencia) justamente nesse aspecto, de estabelecer como traço pessoal um compromisso que praticamente não existe nos principais festivais do país, o de comprometimento com a música sendo um ato de gentileza medular, o que ela significa para o ouvinte, na experiência de apreciá-la das mais diferentes formas possíveis, do interesse em retirar algo de importante daquele momento, do instante de interação, na experiência pré, durante e pós-show, propondo ao espectador todas as alternativas (instrutivas, interativas…) e descobrindo no contato, no aprendizado, no estudo com a música, um exercício quase que cirúrgico da arte, sem jamais deixar de lado o seu enfoque sensorial e básico.

Cinco anos atrás, quando o Novas Frequências ainda dava os primeiros passos, o cenário era completamente distinto e sem perspectiva, não era sequer possível imaginar que aconteceria algo semelhante ao que vemos hoje. Ao menos não no seu aspecto midiático, esse que gradativamente tem se tornado menos negligente e mais participativo. O que ocorre hoje, felizmente, é o quase completo oposto; óbvio, ainda existe muito a percorrer, muito a ser construído, e isso já é visível em função da inteligência, da força e estratégia de divulgação que festivais como esse se propõem a fazer, na preocupação de entregar uma experiência diferente, principalmente dedicada àqueles que buscam na música uma reposta além do visível, e não meramente uma relação material entre objeto e indivíduo. O festival surgiu para ratificar um rito de passagem, porque foi um marco evolutivo do impacto cultural que o sucedeu, com o surgimento desse novo movimento estético, que vem se revelando como uma mudança chave, algo que resultou na agradável expectativa que hoje é latente na cena experimental da música brasileira – e que não parecia possível até pouco tempo.

O festival, desde o princípio, se empenhou em manter um roteiro aprimorado, condizente com sua proposta de abordar, unicamente, a música de vanguarda. No entanto, também é notório sua procura em expandir gradativamente os seus segmentos e oportunidades; até agora, na 5ª edição, o Novas Frequências ainda vive em pleno processo de aperfeiçoamento, ampliando ano após ano as suas áreas de instalação, seguindo sempre diligente, acima de tudo, com o diálogo e desenvolvimento da música experimental contemporânea. Se hoje a existência de uma cena musical brasileira, voltada exclusivamente para a música de vanguarda, é algo perfeitamente fácil de identificar no meio de tantos artistas e bandas viúvas de uma MPB já putrificada, isso sem sombra de dúvidas é reflexo direto do esforço e iniciativa de festivais como o Novas Frequências, no seu compromisso e investimento pela música além do pequeno aspecto distrativo, entorpecente, da atribuição fria. Colecionando ganhos que não se limitam apenas aos contornos do nosso país, podemos certamente celebrar, nesse produtivo caminho de cinco edições, a consolidação do que é possível classificar como uma Vanguarda Carioca, tão produtiva e engenhosa quanto a dos vizinhos paulistas, resultado único de uma ótica que já começa a ampliar os seus horizontes.

Mas e agora, o que esperar do futuro? O que imaginar de um Novas Frequências depois de 5 anos de existência? Uma coisa é certa, a expectativa não é mais tão fantasiosa quanto parecia ser, não no momento em que se encontra o festival, que já almeja um reconhecimento e evolução que ocorrem naturalmente. Antes de qualquer coisa, é curioso notar como a história, não só do Novas Frequências, mas dos festivais como um todo, se entrelaça à do mercado fonográfico, com seus métodos e imposições. Da mesma forma que os artistas devem fazer, o festival se relaciona empaticamente com esse incômodo que se deve enfrentar durante o processo de criação de um novo trabalho vanguardista – esse caminho é sempre complicado, porque envolve a abertura de portas que se encontram fechadas (seladas, para melhor dizer), e exige planejamento, prudência, na hora de ponderar se serão aceitos ou não os anseios do mercado.

Por mais que alguns festivais sobrevivam de nichos, eles também acabam sofrendo do mesmo impacto que ocorre no circuito popular, a exemplo de bandas que tentam se adaptar às mudanças de sua época. Por isso o discernimento é algo tão crucial nesse percurso, pois lida diretamente com a noção de magnitude que um festival constrói ao longo do tempo, buscando alternativas que vão desde o mercado à elevação artística. O Novas Frequências tem sido um caso à parte por identificar essa mutação com extrema cautela, assumindo uma amplitude que mantém sua identidade perfeitamente inalterável, ciente da própria abordagem e objetivos; enquanto, ao mesmo tempo, busca não transformar isso numa prática estranha e de difícil acesso. É justamente nessa visão respeitosa de engrandecimento, na devastação de um período anêmico da nossa música recente que o Novas Frequências surge iluminando um futuro na melhor das possibilidades, ao mesmo tempo em que já apresenta os meios para a transformação e crescimento do mercado de eventos no Brasil.

“Viral, vital”, de Leo Vidigal

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King Midas Sound é um trio que faz ouvir, dançar e repensar. O KMS se formou em 2007 do encontro entre o produtor e instrumentista ingles Kevin Martin, o poeta trinidadiano Roger Robinson e a cantora japonesa Kiki Hitomi, partindo de um conceito cada vez mais relevante nos dias de hoje: a cultura como um corpo múltiplo, que se transforma continuamente por processos de contágio. Quando a consciencia das multiplicidades únicas da cultura humana começou a emergir com uma força inexorável, muitos ainda pensavam como se tais movimentos pudessem ser enquadrados e paralisados para que fosse possível dissecá-los melhor. Explico: nos anos 1990 se alastrou uma teoria que analisava os movimentos culturais como híbridos, por mesclarem fontes diversas, extrapolando as fronteiras nacionais. A ideia de culturas híbridas tinha a vantagem de afastar um pouco essa ilusão de que a cultura praticada em um determinado país é homogênea, algo que ainda ecoa em alguns editais de incentivo. Mas a metáfora botânica do híbrido, a sugerir mudas mestiças reproduzidas em série, sempre me pareceu não dar conta de toda sorte de contatos, repulsas, projetos, recuos, recortes, colagens, repetições, transfusões e mutações da cultura levadas por uma miríade de agentes, não apenas artistas, que continuam ocorrendo de forma ininterrupta e nada estática.

Para a noção de cultura nacionalizada e limitada, há o complemento da obra fechada e protegida. Tais arcaísmos já vinham sendo demolidos na arte, mas somente começamos a ficar conscientes da possibilidade de desmonte dessa unidade da obra, na música popular, por meio do trabalho incansável dos cientistas musicais jamaicanos, como King Tubby e Lee “Scratch” Perry. Em seus laboratórios secretos, eles forjaram o dub, a versão experimental do reggae. Era o resultado do modus operandi dos sound-systems da ilha caribenha, que testaram e aprovaram os lados B instrumentais de suas cançoes, prontas para serem revocalizadas pelos DJs (nome jamaicano do MC), que animavam os bailes e multiplicavam as versoes possíveis sobre as bases instrumentais, os riddims. A desenvoltura com que cada um dos vetores caribenhos manipulava os instrumentos gravados em canais separados e as melodias vocalizadas, desde a estrutura organizadora das faixas até os detalhes mais desapercebidos, era desconcertante. A tempestade das Caraíbas não poderia ficar desapercebida por muito tempo e foi logo contagiando o ritmo e a poesia dos MCs norteamericanos, gerando o rap.

Na seara das bases instrumentais, as transmutações magnéticas e digitais do dub propagaram essa febre sobre muitos outros produtores e engenheiros de som ao redor do mundo e um deles foi Kevin Martin, do KMS. Também conhecido como The Bug, organizou em 1995 a influente coletânea “Macro Dub Infection”, que, de forma pioneira e quase didática, concretizou o conceito de produçao cultural como atividade viral. Aqui cada agente envolvido trouxe em si a possibilidade de se tornar vetor de mutação, verdadeiros desorganismos a atacar nossas certezas, no caso os gêneros e subgêneros musicais definidos e inexpugnáveis. Ela começava com o dub “The Struggle of Life”, realizado por Russell Bell-Brown, que encabeça o projeto The Disciples, no caso discipulos do produtor, compositor e dono de um dos sound-systems britanicos mais tradicionais, Jah Shaka, com quem  começou sua carreira. Esse dub me chamou a atenção tempos depois de lançado por causa de algumas falas pinçadas do filme “Land of Look Behind”(dir. Alan Greenberg), um dos documentários mais interessantes realizados sobre a Jamaica, inseridas em primeiro plano na mixagem. Outras faixas da coletanea, produzidos por nomes consagrados como Adrian Sherwood e Mad Professor, juntamente com produções de realizadores menos identificados com o reggae, mostravam o potencial subversivo e contaminante dos diálogos artísticos.

Vinte anos depois, esse potencial criativo foi mais do que cumprido, em uma explosão sonora que torna difícil a classificaçao, melhor esquecê-la e curtir o som. Martin radicalizou a sua postura e  chegou a entregar suas faixas como The Bug para que outros produtores as modificassem a ponto de não deixar nada do original, se quisessem. Essa abordagem livre foi levada ao King Midas Sound, onde a valorização extrema do processo de produção, talvez o maior legado que o dub deixou para a música popular, foi alçada à condição de princípio norteador de todo o trabalho do trio.

Depois de 3 álbuns e cinco EPs lançados, é possível traçar diversas linhas de fuga para o trabalho do grupo. A poesia de Robinson e a voz sussurrante de Hitomi se combinam com fluxo sonoro concretizado por Martin, que pode se tornar hipnoticamente intenso ou abruptamente insano. No palco adotam uma postura mais agressiva, o que torna a apresentaçao do trio pouco previsível. Mais do que um conceito tornado real, o viral no trabalho ímpar do KMS se torna vital.

“Arquitetura & Sons & Vice-Versa”, de Luca Forcucci

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A relação entre arquitetura e som é implementada na memória de cada humano como, talvez, uma das primeiras percepções do mundo (e de palavra), enquanto se está nadando dentro de uma arquitetura líquida de placenta. O som surge diretamente do corpo da mãe como uma percepção física, que é incorporada como uma relação orgânica de arquitetura e som.

Arquitetura e som possuem uma longa história em comum e, desde que o som especial é associado ao que é sagrado, “foi a natureza humana que isolou esses lugares hiper-acústicos da vida mundana diária e os colocou em um lugar altamente importante, porque o comportamento do som anormal significa presença divina” (Eneix 2014). Tais ocorrências são investigadas em arque-acústica como exploração de sons de espaços históricos: Stonehenge foi concebida para direcionar precisamente o som da voz, de acordo com uma pesquisa recente conduzida no Reino Unido. Em Malta, a posição das pedras controla o som dentro de templos megalíticos para melhorar a qualidade da voz. Depois, sem o contexto sagrado, e adaptando estratégias acústicas durante o processo de design arquitetônico, os gregos e os romanos construíram teatros extraordinários, que enfatizavam as propriedades acústicas e providenciavam uma clara percepção da voz dos atores.

Trabalhos musicas específicos foram compostos com prédios em mente (por exemplo, em 1436 Guillaume Dufay compôs o seu moteto para a Catedral de Florença), ou seja, as propriedades acústicas dos prédios foram integradas às composições, um componente espacial, uma inter-relação de forças. Isso foi formulado depois, pelo compositor francês Edgard Varèse, como uma nova forma de contraponto, um contraponto espacial. Ele propôs a projeção de massas sonoras em um espaço de performances. Le Corbusier, com Iannis Xenakis como arquiteto e compositor (então trabalhando para o arquiteto franco-suíço em Paris), foi comissionado pela companhia holandesa Philips para criar o pavilhão deles para a exibição mundial de 1985 em Bruxelas. Le Corbusier comissionou Varèse para a composição do Poème Electronique, que finalmente materializou as idéias de difusão e composição espacial do compositor francês imaginada por anos: um sound system de quatrocentas caixas de som projetou a composição de massas sonoras dentro do prédio.

Som (e arquitetura) nas artes tem sido explorado de muitas maneiras e formas. Os três compositores americanos a seguir propuseram várias estratégias nas quais as relações entre som e arquitetura seriam os componentes principais. Maryanne Amacher recombinou sons de vários lugares de diferentes cidades nos Estados Unidos entre 1967 e 1981, City Links “envolve fontes sonoras de dois ou mais lugares remotos (cidades ou lugares dentro da cidade): através de links eletrônicos, a música é composta, em espaços distantes entre si, juntos em tempo”. E ela continua: “meu interesse não é em samplear efeitos sonoros, mas em criar uma sensação de escondido, lugares interiores dentro da cidade: padrões de harmonia, dimensão, obscuros à luz do dia, claramente ouvidos, existindo magicamente somente à noite” (Amacher n.d.). Dentre as diversas obras que ele compôs baseadas em som e espaço, a icônica I am sitting in a Room, de Alvin Lucier, foi concebida em torno da gagueira de sua voz, e do som embaçado pelas gravações e projeções consequentes no espaço para performance de várias gerações da seguinte frase:
“Estou sentado em um local diferente do que você está agora. Estou gravando o som da voz falante e vou tocá-la de volta para o local de novo e de novo até que as frequências ressonantes do local se reforcem para que qualquer aparência da minha fala, com talvez a exceção do ritmo, seja destruída. O que você escutará, então, são as frequências ressonantes naturais do lugar articuladas pela fala. Eu vejo essa atividade não muito como uma demonstração de um fato físico, mas mais como uma maneira de amenizar qualquer irregularidade que a minha fala possa ter.” (Lucier 1969)

Por fim, o ex-percussionista Max Neuhaus propôs o termo instalação sonora, a fim de colocar o som no espaço ao invés de tempo. Um dos seus trabalhos icônicos, Time Square, pode ser encontrado em Nova Iorque na parte do norte da ilha para pedestres localizada na Broadway entre as ruas 45th e 46th e consiste de uma gama de tons relativamente próximos que provêm de debaixo das grades de metal do metrô. O público é convidado a caminhar cuidadosamente na grade de ventilação e escutar a experiência contrastante das delicadas ondas e do caos da Times Square. As (inter) relações entre arquitetura e som são uma preocupação antiga e estes foram movidos de contextos ritualísticos sagrados para questões contemporâneas para controle sonoro para um ‘conforto’ moderno, ou mesmo componentes supremos nas artes. Tais idéias têm ocupado a minha cabeça por uma vida inteira e são explorados na minha prática artística, que é informada por um histórico em artes sônicas e arquitetura. Uma experiência pessoal memorável e crucial vem do Carnaval de Notting Hill em Londres nos anos 90 quando eu caminhei pelas paredes de sons emitidas dos diversos sound systems jamaicanos: uma percepção surgindo da fiscalidade sentida da música. Tal experiência me afetou e me fez perceber a possibilidade da existência de uma arquitetura sônica de verdade, além da música, encapsulando o potencial em alterar consciência e mexer a alma.

Bibliografia
Eneix, L., 2014. Ancient Man Used ‘Super-Acoustics’ to Alter Consciousness (… and Speak with the Dead?). (Em http://phys.org/wire-news/164386603/ancient-man-used-super-acoustics-to-alter-consciousness-and-spe.html [Accessado em 12.09.2014])

Lucier, A., 1969. I Am Sitting in a Room. Lovely Music LCD 1013.

Amacher, M., n.d. Maryanne Amacher: City-Links. (Em http://ludlow38.org/files/mabooklet.pdf [Accessado em 25.10.2015])

“Visões do inaudito”, de Juliano Gomes

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A nossa percepção sente a vida como um pacote contínuo: cheiros, imagens, temperaturas, paladares e sons. A arte, entretanto, faz o serviço contrário: bagunça tudo. Mas como? Pela repetição, corpo vai, no cotidiano encontrando padrões e associando um elemento ao outro, tentando organizar a zona. O cheiro da minha rua, a textura da porta, e assim vamos criando teias associativas que vão nos guiando pelo cotidiano para fins de estabilidade e segurança do corpo. Reconheço as coisas pra quando eu voltar dispender menos esforço e me concentrar no que é novo, no que ainda precisa de mapeamento, no que e solicita contornos.

Mas os sentidos não são todos iguais. O tato depende da proximidade para haver contato. Assim como o paladar também. O olfato é um sentido sensorialmente muito intenso, mas um cheiro médio se estabiliza nele com facilidade, é um habilidade pra perceber somente odores que passam de uma certa linha de intensidade. A visão e a audição são os que conseguem, cada uma à sua maneira, suprimir e representar as distâncias. São os sentidos onde as escalas, as configurações de percepção, podem com mais facilidade atingir maior complexidade de sensação, podem criar mundos iminentemente novos. É quase impossível ver ou ouvir somente uma coisa por vez. Visualizar ou escutar é realizar uma composição.

Ver e ouvir nos causam sensações sobre as quais temos maior possibilidade de desdobrar. Podemos dizer que são sentidos mais narrativos, os sentidos pelos quais criamos histórias. A visão e a audição são dimensões absolutamente propícias ao timbre e ao ritmo. São dimensões de sensação que suscitam outros mundos: um ruído de metal arranhando uma superfície nos arrepia, uma imagem de um globo ocular sendo cortado por uma navalha nos evoca um corpo diferente, um corpo sensível, inventado pelas sensações.

Desde a primeiríssima edição, acompanho avidamente a programação do Novas Freqüências. Hoje, posso dizer certamente: a cada vez que saio de casa para uma nova apresentação, já não saio para ouvir nada. O que esse desejo de exploração de mundos pelo audível me ensina é justamente que um som serve para muito mais coisa além de ouvir. Seja no palco, lugar de ser “visto”, atrás de uma pick-up, ou mesmo sem a visão da presença do artista, mergulhar no mundo das audições ainda não ouvidas é se entregar para um outro corpo que vem, que a experiência inventa.

Um som, provavelmente mais do que qualquer outro bloco de sensação, tem um poder de evocar. Uma evocação é um chamar para fora, chamar para que apareça: evocar é uma tradução (codificar e descodificar, codec). A cada ida minha a um evento que compartilha este desejo radical de criar aparições do que ainda se desconhece, eu posso dizer sem medo que saio de casa para ir ao cinema. Quero expor o meu corpo para imagens que ele ainda não conhece, e criar assim uma visada dele mesmo que ele ainda não conhece. Conheci tempestades de graves cor de chumbo, agudos quase inaudíveis em forma de pequenos raios, de mini curto-circuitos. Isso pra não falar dos fantasmas.

Me parece um gênero nas artes de exploração sonora o desejo de fantasmagoria. E o que é um fantasma: uma aparição, uma visão do que não estava lá, do que vem de lugar nenhum, uma percepção pura afinal. O fantasma é quando o corpo projeta pra fora uma forma, que já não se sabe se é percebida ou produzida (afinal, que diferença faz?). E os fantasmas que vejo pelo som tem uma vantagem enorme: eles não precisam falar, nem eu preciso falar deles. Simplesmente aparecem, de onde menos espero.

Esse tipo de figura só aparece pelo sentir, ele é um emaranhado de sentires que não é criado por uma idéia: ele é uma idéia. A exploração sonora é uma fábrica de espectros, de aparições não exclusivamente auditivas. O corpo em experimentação cria sensações sem nome e sem pertencimento, confunde o funcionamento orgânico (se é que ele já realmente existiu). Posso dizer sem metáfora: aqui fecho o meu olho para ver melhor, ver além, ver aquém, contraver. Paisagens, horror, ternura, ira, seres cujo contorno é dado por um sentir que se torna visual e que inventa um outro olho (talvez um olho cortado por uma navalha). O contorno é uma ilusão da visão: o que há no som e na imagem são variações de intensidade, o que divide uma coisa da outra é uma abstração prática. Portanto, em sua dimensão exploratória, o som reensina minha visão a ver, desensina o que ela é para que, sendo outra coisa, ela posso realmente ver.

Existe cinema porque nosso corpo tem defeito. Esse milagroso efeito faz com que, dependendo do ritmo, a visão crie uma imagem, um atraso, um delay, do que não estava lá. Esse atraso, se combinado com um pequeno deslocamento, causa a impressão de movimento contínuo. A visão tem um ritmo, um pulso, uma percussão própria. Seu andamento de base é por volta de dezesseis imagens por segundo para que essa mentira se solidifique continuamente diante de nós. Nossa música. Minha percepção é, “naturalmente”, um pedal de efeito. Somos abençoadas fábricas de fantasmas. Somos máquina, circuitos de feedback, potencialmente cabeados nos lugares errados cujo talento e desejo aponta para apreensão no inaudito. É preciso estar a altura dos nosso defeitos, ver pelo ouvir, ouvir pelo ver – é para isso que estamos aqui.

“Fantasmática Geo Vox”, de Lilian Zaremba

 

 

aaAquela voz aguda não era apropriada para alguém descrita como “dama de ferro”. Suas frequências sonoras não denotavam, segundo o padrão já enraizado, credibilidade. Para o súditos da rainha britânica, este som agudo, um tanto esganiçado, era algo inconcebível. Por este motivo, Margareth Thatcher foi obrigada a treinar sua voz para falar em tom mais grave, entronando voz afirmativa e poderosa, no viés da entonação, moldando-se às inúmeras solicitações de supremacia inauguradas com a civilização. Nesta construção eliminam-se “fragilidades”, alcançando na distorção do real compor fielmente “verdades”… Um objetivo curioso e poucos imaginavam – mas agora os cientistas já sabem – que a voz do homem das cavernas por conta de uma mandíbula pequena com estreita abertura de laringe, soava como um soprano esganiçado, semelhante a voz de Margareth.

As vozes nunca foram inocentes, carregam bem mais que palavras. Através dos séculos, foram sendo moldadas por motivos religiosos, políticos, filosóficos, estéticos, físicos, no resumo, um processo milenar de modelação não apenas da voz mas do homem mesmo. A voz que discursa, a voz letrada, é também a voz limpa, culta, honesta, verdadeira, sem rugas, imaculada espécie de bel canto. Paralelo a esta camisa de força redutora se opõe a escuta por conta de sua interioridade, exigindo presença e verdade contra simulação e representação. Na escuta habitam outras vozes longínquas e próximas como naquela história milenar onde reis distantes se comunicavam através de caixas. Ao abrir, a mensagem ecoava sendo ouvida – embora nada ocupasse esta caixa. Assim, também, plantas falam, como os anéis silenciosos do tronco da árvore contando sua história em música. Bartholomäus Traubeck recentemente traduziu em algoritmos os anéis de uma fatia de tronco de árvore cortado e tocado como disco. Colocado neste “toca-discos” plataforma giratória, escutou sua música em notas de piano.

Vozes parecem inauditas, mas estão todo tempo revelando suas falas para quem se dispõe a observar outras escutas.

Histórias pertencem e se relacionam às vozes oferecidas, entregues.

Anti Vox

Entre as características do som, lembrou Cage em “Silence”, apenas a duração envolve ao mesmo tempo, som e silencio. Naquelas três obras denominadas “Delivered in Voices”, Tunga exercita esta equação entregando formas ampliadas de escuta.

Na primeira escultura, onde logo enxergamos um meteorito, o aparente silencio daqueles átomos, moléculas ou íons reunidos em forma cristalizada canta tridimensionalmente impregnado por ondas eletromagnéticas. Se para tudo existe um inverso, matéria e anti-matéria, estas falas ali – sim, além do poeta, o meteorito fala – podem ser anti-vozes.

Uma voz encobre ou descobre.

Uma voz dá profundidade ao eco silencioso desta fala som vocal do sentido, mesmo que seja outro mundo: um meteorito pode ser fragmento de planeta.

O corpo pode até esquecer o corpo neste falante onde caminhos inversos convivem: Dylan Thomas agora deixa escapar: once it was the colour of saying. Nesta voz do poeta, não apenas um meio para produzir palavras, não apenas o poder da convicção da fala, mas o gosto nas remarcáveis permutas eletromagnéticas junto a este outro eco meteórico, resto de planeta desintegrado.

Phantázein: fantasma ou fantasia

A espada ritualística que é de Jorge mas também de Ogum, brada sua fala inaudita afastando vibrações negativas. Ali, naquela escultura, ondas amplificadas desta planta também captam a voz infantil e herdeira de um tempo que lhe foi tomado, quando retirada deste mundo precocemente. Phantázein: fantasma ou fantasia.

Lobo conduto

Um cristal, também gelo e quartzo como queriam os gregos da antiguidade, são condutores de geometria vibrando em seu tamanho: quanto maior o cristal mais grave a frequência de suas ondas, e inversamente, quanto menor, mais aguda. A sonoridade vibra emanações elétricas, condutoras de mensagens precipitando fortes, suaves, escutam o poeta entregar vozes de lobos.

Embutido naquela última escultura, um microfone evoca Orfeu, encoberto pela argila que um dia o criou. Sendo a cor desta fala transparente, numa lira de mais cordas – lira de Orfeu – cada corda amplia o silencio de alguma outra ainda muda. Nesta geometria de vozes, cargas elétricas estão dispostas em arranjo fônico sussurrando: uma voz acorda outra voz adormecida.

Desencarnados, alguns ouvidos aceitam surpresos sua leviandade, já não temem uivos de lobos, espadas ou vozes partidas, porque estes acordam a lua, e a luz desta acorda o silencio do cristal, do meteoro, das plantas…. a voz acorda outra voz que dorme,

Algumas habitam outros mundos, outras apenas estavam ali quase quietas em sua fala peculiar, palavra e som transformando todo o corpo em uma boca… disse Allen S. Weiss: “apenas quando todo nosso corpo se transforma numa boca é quando verdadeiramente conseguimos falar“. Bocas, vozes, palavras, plantas, cristais entregues, afinal se estabilizam no calor desta fusão ordenada, “Delivered in Voices”.