Novas Frequências 2014

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Novas Frequências UK Showcase

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Brazilian new music festival Novas Frequências will do it’s first international showcase in April, bringing 2 Brazilian acts from Rio de Janeiro to the UK. Power improv trio Chinese Cookie Poets and tropical no wave Negro Leo open Glasgow’s Counterflows Festival on April 2nd and then play Cafe Oto on April 4th.

This showcase marks the first partnership between Novas Frequências and Counterflows, an action supported by the Transform UK-BR arts program run by the British Council. Encouraged by the British Council, this showcase marks the beginning of a collaboration between Novas Frequências and Counterflows. Longer term, both festivals are planning to develop possibilities for Scottish artists to perform in Brazil and also produce some kind of new collaboration between Scottish and Brazilian artists exploring shared and differing cultural processes and methods of expression.

Tickets here and here.

Chinese Cookie Poets

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Chinese Cookie Poets is a Brazilian trio from Rio de Janeiro that started in 2010 with Marcos Campello (electric guitar), Felipe Zenícola (electric bass) and Renato Godoy (drums). A surly rock, physical and ludic; A rocker free jazz, with a stop-and-go esthetic and breathtaking dynamics in short compositions. A live concert from Chinese Cookie Poets is always a blend of brutal intensity and meticulous interventions with strictly arranged compositions but with blank spots for improvised sections without sounding as two diverse areas.

Negro Leo

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Based in Rio de Janeiro, Negro Leo is a singer, songwriter and musician from Maranhão. Influenced by Peter Brötzmann’s free jazz, by Caetano Veloso and Jards Macalé’s “tropicalismo”, and by James Chance and Arto Lindsay´s no wave, Negro Leo has been highlighted in Rio´s scene alongside bands linked to Quintavant, an event that happens at Audio Rebel and includes artists such as Cadu Tenorio, Bemônio and Chinese Cookie Poets itself.


Novas Frequências no Reino Unido

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O Novas Frequências realiza em abril o seu primeiro showcase internacional: dia 02 abrindo o incrível festival escocês Counterflows (Glasgow) e dia 04 no prestigioso Café OTO em Londres. No line-up? Chinese Cookie Poets e Negro Leo, dois dos artistas mais promissores da nova cena de música experimental carioca.

Este showcase marca o início de uma colaboração estimulada pelo British Council entre o Novas Frequências e o festival escocês Counterflows. A longo prazo, ambos os festivais planejam desenvolver possibilidades para artistas brasileiros e escoceses executarem residências, projetos comissionados e colaborações compartilhadas explorando diferentes processos e métodos de expressão cultural.

Chinese Cookie Poets

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Chinese Cookie Poets é um trio formado no Rio de Janeiro em 2010 por Marcos Campello (guitarra), Felipe Zenícola (baixo) e Renato Godoy (bateria). Um rock ríspido, físico e lúdico; um free jazz roqueiro com uma estética stop-and-go e dinâmicas de tirar o fôlego em composições curtas. Uma apresentação ao vivo do Chinese Cookie Poets é sempre um misto de intensidade brutal e intervenções meticulosas com composições fixas mas que abrem espaço para terrenos de improviso.

Negro Leo

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Cantor, compositor e instrumentista maranhense radicado no Rio de Janeiro, Negro Leo é influenciado pelo free jazz de Peter Brötzmann, pelo tropicalismo de Caetano Veloso e Jards Macalé, e pela no wave de James Chance e Arto Lindsay. Negro Leo vem se destacando na cena carioca ao lado de bandas ligadas ao Quintavant, evento que acontece na Audio Rebel (Botafogo/RJ) e que inclui artistas como Cadu Tenório, Bemônio e o próprio Chinese Cookie Poets.


Corpos Sonoros

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Por J.-P. Caron (Filósofo e compositor)

Cornelius Cardew: “Reflexão antes de uma performance. Uma partitura musical é uma construção lógica inserida no caos de sons potenciais que permeiam este planeta e sua atmosfera.” [1]

Estamos o tempo todo imersos em sons. A cada vibração do ar, novos sons. E a cada novo som, novos agentes que o causaram.

Cardew diz que uma partitura é uma construção lógica inserida neste mundo. Em certo sentido, é como se ela fosse um filtro. Assim, ela determina, de tudo aquilo que no mundo soa, tudo aquilo que faz parte da música a ser soada.

Em um sentido análogo, o instrumento musical é um filtro.

Por outro lado, estamos acostumados a pensar que o instrumento produz a música. Em certo sentido, sim. A música não existe sem o instrumento, mas enquanto instrumento ele está a serviço da música. Isto significa que além da música ser função do instrumento, este é construído a partir da música que se faz. O instrumento tem sua forma determinada pela música que se espera que saia dele.

Assim, o piano apresenta teclas brancas e pretas totalizando doze, que delimitam o universo sonoro a ser utilizado. Uma guitarra apresenta uma sequência de trastes que, se pressionados da forma esperada, resultam em relações melódicas e harmônicas formatadas dentro da tradição. Isto é o que se espera deles enquanto instrumentos.

Um dos critérios propostos por Michael Nyman para a música experimental é o uso do instrumento como configuração total. Mas o que significa isso? Instrumentos, além de instrumentos, são objetos, e enquanto objetos, guardam potencialidades que não são esgotadas por sua natureza instrumental.

O uso do instrumento como configuração total o abre a um universo sonoro que não comparece em seu campo pré-determinado de atuação (as teclas do piano e os trastes da guitarra), mas que está presente no instrumento enquanto objeto. Potencialidades várias se escondem no uso das caixas de ressonância, na intervenção direta nas cordas, ou no ato de “alimentar um piano”.

La Monte Young: “Trazer para o palco um pouco de feno e um balde de água para que o piano coma e beba. O intérprete pode então alimentar o piano ou esperar que ele se alimente sozinho.” [2]

O uso do instrumento como configuração total implica em um deslocamento de função do instrumento ou de partes dele. Este deslocamento incide sobre o filtro que aceita e rejeita os sons do mundo que podem ser absorvidos pela composição. Enquanto me movo nas teclas, me movo em um universo delimitado pelo temperamento. Quando saio delas e adentro as cordas, caixa, tampa, etc., meu universo se altera.

Não consigo sempre prever o que irá acontecer. O uso do objeto inclui uma parcela de imprevisível.

Pianoguitarra. É possível criar híbridos na medida em que os campos de absorção de sons possuem interseções. Toco diretamente nas cordas e o piano se torna uma guitarra. Os instrumentos são unidos pela presença do material-cordas. Minha ação sobre ele explicita essa continuidade. Quem ouve, ouve uma indistinção entre os instrumentos, que habitam um continuum de sons no qual ambos se encontram no meio e se separam nas extremidades. Aproximar-se e afastar-se é escolha daquele que toca (mediada pelas contingências do material).

“Oco é o espaço entre as coisas.”

Faz sentido fazer soar o espaço como continuidade, mas cuja continuidade inclui o descontínuo? Um vazio entre um e outro se interpõe, demonstrando por essa ausência mesmo a continuidade – um e outro se aproximam sem fundir-se. O vazio entre os dois demonstra a proximidade. Sem ele, dois tornar-se-iam um.

Dois não chegam a tornar-se um, mas aproximam-se assintoticamente. Assim, consigo aproximar meu instrumento daquele outro som, sem tornar-se ele.

A memória participa, portanto, do meu instrumento. A absorção de sons do mundo é função da memória que tenho destes sons, assim como das potencialidades do objeto que tenho sob as mãos e pés de incluí-los (imitá-los) no mundo que habito. O instrumento é uma máquina de seleção, mas também de mimese. Com ele imito o instrumento do outro, mas também quaisquer sons que acontecem.

São acoplamentos instrumento-instrumento, instrumento-mundo, corpo-instrumento, memória-corpo, memória-instrumento em todas as combinações possíveis. A tecnologia multiplica as possibilidades de acoplamento.

Como eu disse uma outra vez: Os dispositivos musicais montados [na obra] são, assim, exibidos como agentes com os quais o intérprete forma um corpo total.

Notas:

[1] “Reflection before a performance. A musical score is a logical construct inserted into the mess of potential sounds that permeate this planet and its atmosphere.” (Cornelius Cardew, Treatise Handbook)
[2] La Monte Young: Piano piece for David Tudor n. 1


O caso de amor entre a arte e o mundo dos sons…

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Por Franz Manata e Saulo Laudares (Produtores, curadores, artistas)

…apesar de ser um fenômeno recente na mídia, tem suas raízes no início do século passado quando cria sua densidade histórica e se converte no repertório da produção contemporânea.

Os primeiros a se interessar por esta nova gama de possibilidades foram os Futuristas italianos, os Dadaístas e Marcel Duchamp, ao valorizar esteticamente o entorno acústico.

Já nos anos 50, a música eletrônica deixava de ser uma mera esquisitice ou curiosidade científica. Os novos instrumentos, a tecnologia de áudio e suas possibilidades passam a despertar o interesse da música clássica acadêmica como forma de expandir os limites do seu repertório.

Nessa época, em Paris, o pesquisador Pierre Schaeffer se associa ao compositor Pierre Henry e funda o GRMC “Groupe de Recherche de Musique Concrète” e começam a gravar, cortar, editar e espacializar os sons concretos (ruídos, texturas, sons provocados etc.) produzidos durante longas madrugadas nos estudios da RDF “Radiodiffusion Télevision Française”.

Do outro lado do Atlântico surge John Cage que amplia as concepções e possibilidades da música ao provocar os ouvintes a escutar o silêncio e os ruídos espontâneos nos concertos, introduzindo o acaso como parte da composição.

Influenciados por estas idéias, numa atitude neodadaista, artistas do grupo FLUXUS organizam, durante os anos de 60, uma série de festivais — entre eles o antológico Festival da Nova Música, realizado em 1962, em Wiesbaden, na Alemanha — onde incorporam, o discurso sonoro, a performance, o happening, os ambientes e esculturas sonoras, contribuindo decisivamente para atribuir estatuto estético ao som. A partir daí, música e arte nunca mais foram as mesmas.

Os anos 80 assistem a um crescente número de artistas, grupos e coletivos que cruzam as fronteiras e atuam no mundo do entretenimento ao mesmo tempo que performam em centros de arte e colocam obras em importantes museus e coleções. Ao longo dos 90 os festivais se multiplicam e apresentam uma proliferação de gêneros e subgeneros tantos quanto a música contemporânea pode criar.

Atento às tendências da música experimental, o Novas Frequências tangencia o mainstream, dialoga com essas vanguadas históricas e apresenta artistas que buscam, com suas linguagens, outras texturas e visualidades sonoras.

Nessa quarta edição os convidados têm em comum a percepção da música a partir do fato ‘objetual’, matérico, físico, lançando mão de cassetes, vinis, remixes e sons que pode ser sintetizados, somados a instrumentos acústicos, sampleados e manipulados, previamente e/ou ao vivo.

Não se trata de neoludismo ou da simples discussão sobre obsolescência mas, sim, levar a cabo uma prática de vida que realça e resgata determinados ‘índices’ que já não são mais tão valorizados no mundo atual, onde ter a última versão do gadget é imperioso.

Um bom exemplo é Cassette Memories de Aki Onda, japonês que vive no Brooklin e já se apresentou no The Kitchen (NY) e no Centre Pompidou (Paris). Um “diário sonoro” feito com sons compilados há mais de duas décadas, a partir de suas gravações de campo realizadas com um Walkman. O projeto terá continuidade aqui no Rio.

Trazendo sua leitura contemporânea para a música árabe e sufi clássica, a peça Tarab Cuts, de John Butcher & Mark Sanders reune improvisações com elementos de violino, percussão e trechos de cantos retirados de uma gigantesca coleção de discos de Beirut com material que vai de 1903 a 1950. O trabalho já foi apresentado na Serpentine Gallery e em vários festivais contemporâneos como o London Jazz, o Counterflows e o Bristol New Music.

Já o inglês Philip Jeck usa seus vinis antigos e toca-discos garimpados em sucatas como se fossem instrumentos musicais adaptados segundo suas necessidades estéticas e expressivas, criando texturas surpreendentes. Conhecido como “arqueólogo de sons” ou, “o cara que escuta coisas que só ele ouve”, Jeck participou de importantes mostras de arte como a Bienal de Veneza, e expôs na Hayward Gallery e no Barbican Centre, em Londres.

O norte-americano Keith Fullerton Whitman é o que se pode chamar, pelo seu conhecimento teórico e prático, de um virtuose da cena eletrônica. Keith têm gastado grande parte de seu tempo e energia criativa para desenvolver uma apresentação inteiramente live. Seus sintetizadores modulares (analógicos e digitais) permitem uma complexidade de sons que ele apresentou recentemente em dois discos (Generators e Occlusions) lançados pelo selo austríaco Editions Mego.

O que vemos nesse recorte de artistas é que a tecnologia de áudio continua transformando a música e inundando a arte sonora. O Novas Frequências nos convida para refletir sobre esse romance, que ainda vai longe…


Transistor, Transistória: as máquinas e as musas

Som Peba

Por:
Fred Coelho (Escritor, professor de literatura e pesquisador, DJ da festa PHUNK)
Bernardo Oliveira (Crítico e professor de filosofia, co-produtor do Quintavant)

Por iniciativa de Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, a Missão de Pesquisas Folclóricas percorreu o Norte e o Nordeste do Brasil durante o ano de 1938. Em busca de registros de manifestações culturais, particularmente de dança e música, trouxeram na bagagem gravações em áudio e imagens dos estados de Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Pará e Minas Gerais. Entre os registros mais interessantes, é possível citar o caso dos “carregadores de piano” de Recife, grupos com cerca de oito homens que trabalhavam no porto e carregavam os pianos que chegavam da Europa para as casas particulares. No caminho, cantavam para ritmar o passo, entoando temas motivacionais com títulos como “Vamos nessa meus amigos”, “O coati tá no pau” e “Meu barco é veleiro”. O fenômeno é análogo aos vissungos brasileiros e aos work songs norte-americanos, mas destaca-se pelo modo singular com que os cantores jogam com dinâmicas de pergunta-e-resposta, semelhante ao coco de roda.

Música-acontecimento devido ao registro flagrante, mas também música-empoeirada, coberta por uma fina camada de ambiências e ruídos, captada por um antigo gravador MR6 DE, microfones e amplificadores, em sua maioria produzidos pela empresa norte-americana Presto Recording Corporation. Muitas perguntas surgem então: essa música pode ser considerada independentemente do fenômeno e do registro, “gênero” ou “estilo”? Desde o momento em que foi registrada, ela não permanece atrelada, não só ao momento, como também às condições técnicas e experienciais do seu registro — incluindo o contexto e a presença do gravador e dos técnicos? A prática do registro participa da afirmação do fenômeno no tempo presente, uma vez que permite, com suas lentes, que ele chegue até nós? Ela capta o acontecimento de forma absoluta ou possibilita seus desdobramentos virtuais a cada nova audição? Chiados e desequilíbrios passam a fazer parte do fenômeno ou se resumem a um efeito colateral inconveniente?

A canção no Brasil desempenha um papel central na produção de subjetividades e nos modos de narrar a história. A música brasileira é concebida e desenvolvida à luz da canção e seus desdobramentos práticos — a festa, o carnaval, o ato social, as mensagens subliminares, a conversa da malandragem, a estratificação social, o amor, a flor e o espinho. A história da canção oferece um eixo para nossas narrativas de origem e para nossas narrativas trágicas. Ela manifesta uma certa concepção de evolução (“a linha evolutiva”), demarca os períodos de ouro e de crise (a Era do Rádio, a Era da Bossa, a Era dos Festivais), e, finalmente, compartilhando seu espaço com outras modalidades sonoras, a canção se torna indício de uma suposta decadência, anunciada através de diagnósticos apocalípticos (“o fim da canção”, “o fim da cultura”). Decerto, não se trata de decadência, muito menos de involução, mas talvez de uma indisposição metodológica, um modo específico de se perceber os fenômenos sócio-sonoros.

Imaginem que a história da música brasileira não começou com a beleza sublime da canção popular. Que, virando tudo de cabeça pra baixo, não foram suas vozes que viraram musas. Imaginem que essa história começa quando alguém grava essa canção para que ela possa ser reproduzida para todos. Uma história que privilegia a técnica da gravação, o fenômeno maquínico da música — a captação do som — tornando-se uma espécie de centro gravitacional das narrativas sobre a canção e sobre a música brasileira em geral. Nessa história contra factual, temos momentos importantes, quiçá origens fundadoras. Podemos escolher, como marco zero dessa história da máquina na música, a chegada ao Brasil de Frederico Figner, um tcheco que, após um período em Nova Iorque, desembarca em Belém do Pará no longínquo ano de 1891. Figner traz ao país a novidade inventada por Thomas Edison: um aparelho que já estava bem próximo do que viria a ser o fonógrafo. Rodou boa parte do país, principalmente no Norte e no Nordeste, registrando as vozes das pessoas e as fazendo ouvi-las em reprodução mecânica pela primeira vez. Ao chegar ao Rio de Janeiro, capital da recém-fundada República, ansiosa de tecnologia e modernidade, ele abre sua famosa Casa Edison, na rua Uruguaiana. Logo depois, com o advento das “bolachas” (discos de cera), Figner mudou sua tecnologia e ampliou os planos. Tornou-se o responsável por importar novas máquinas, equipamentos de gravação e reprodução, abrindo um estúdio e uma nova loja na rua do Ouvidor. A partir de então, em 1902, passou a lançar os primeiros discos brasileiros (e o selo Odeon). Baiano, cantor popular do período, gravou “Isto é bom”, e a canção popular deu o seu primeiro passo para dominar todas as narrativas sobre a música brasileira.

Os modelos musicais com os quais se trabalha a história da música no Brasil excluem uma pesquisa de modos técnicos, pesquisa de timbres (fontes sonoras) e de alturas (frequências), para se concentrar na poesia, na tríade melodia-harmonia-ritmo e, eventualmente, na questão da performance. Neste contexto, qual seria o estatuto das pesquisas conectadas à manipulação de alturas e timbres, de invenções técnicas e ambiências? Será que o único elemento na música brasileira é a canção consonante, as dissonâncias administráveis, os instrumentais como acompanhamento e a gravação limitada ao registro do momento? Ou a percepção de certas práticas e procedimentos afirmam uma história apócrifa: a história do som na música brasileira? É por este caminho que pretendemos ventilar a hipótese de uma determinada história da música no Brasil, uma história experimental sobre uma forma experimental de se conceber e produzir música, ressaltando as pesquisas, o jogo de erro-e-acerto e os modos de criar sons presentes em toda música. História, portanto, elaborada a partir de práticas e questões acerca do som e seus desdobramentos técnicos, tecnológicos e inventivos.

Se a nossa história fosse também a do Som como referência, e não somente a da voz e da canção, saberíamos tudo sobre Fred Figner. Saberíamos provavelmente o nome do técnico da gravação da música interpretada por Baiano. Teríamos certamente um relato heróico desse momento de precariedade e superação na primeira gravação brasileira. Um relato com o mesmo heroísmo contido nas festas de Copacabana e Ipanema, o mito de fundação da Bossa Nova; ou na história sobre o dia em que João Gilberto bateu na porta dos Novos Baianos em um apartamento na rua Conde de Irajá. Sabemos, porém, que isso não ocorre. Ninguém sabe o nome do nossos primeiros técnicos, raramente sabemos seus nomes ao longo do tempo. Quem operava as máquinas, não estava ao lado de quem usufruía do seu funcionamento — isto é, os cantores e instrumentistas que eram gravados.

Integrado a uma publicação ligada ao Festival Novas Frequências, este comentário visa marcar um contraponto ao que se discute hoje em dia quando falamos dos sons contemporâneos e da abertura radical dos parâmetros tradicionais de se fazer, pensar e fruir a música enquanto fenômeno estético. Não que os múltiplos sons e experimentos sonoros que circulam pelo festival não sejam parte de uma tradição. Ao contrário: quanto mais eles se expandem, mais se enraízam em uma cadeia de eventos que passam por experimentos de músicos clássicos no começo do século XX, por sonoridades não-ocidentais que trabalham em registros inovadores que transgridem o paradigma modal que fundou a cultura moderna, pelos usos de máquinas como dispositivos aleatórios de composição e de outras formas que marcaram o espírito criativo do seu tempo. Assim, não estamos falando de uma “novidade” no sentido de “alternativa” e nem em algo que, por ser novo, precisa negar tudo que existiu até então. Estamos falando sim de um “novo” como permanente diferença em relação ao conforto de uma história estável, ou de uma recepção comportada. E poucas coisas são mais estáveis e comportadas do que a forma como se conta até hoje a história da música brasileira.

Jacob do Bandolim, por exemplo, era fascinado pela tecnologia e se inteirava constantemente do universo de equipamentos e efeitos, chegando a utilizar-se de fotografias e microfilmes para facilitar a transcrição e armazenamento de partituras. Em 1959, durante as gravações de uma série de faixas para a Rádio MEC (relançado em1996 com o título Choros, valsas, tangos e polcas), Jacob toca um instrumento que ele próprio inventou, o Vibraplex, espécie de guitarra elétrica que explorava as reverberações de um violão tenor. Com isso, evidenciava uma pesquisa por outras formas de tocar, de compor e de “timbrar” instrumentos do choro. Outros tópicos dessa história do som seriam constituídos por um estudo acerca das relações entre técnica, registro e invenção, tanto nas expedições organizadas por Mário de Andrade nos anos 30, como na caixa Música do Brasil, organizada na primeira década do século XXI por Hermano Vianna e Beto Vilares. Seria preciso também lançar luz sobre as escolas de música dos anos 60, coordenadas por grandes experimentadores — entre elas a UNB, com Claudio Santoro, Rogério e Régis Duprat, Damiano Cozzela e Décio Pignatari e a UFBA, com Hans-Joachim Koellreutter e Ernst Widmer; resgatar as experiências com frequências e silêncio de Walter Smetak; prestar atenção ao “Hertzé” e demais instrumentos inventados por Tom Zé; estudar a tamba, o chocalho d’água e outros instrumentos inventados por Pedro Sorongo; João Gilberto como noise musician; não esquecer a voz e o violão de Nelson Cavaquinho, que ainda aguardam um estudo aprofundado devido a sua extrema originalidade; reconhecer os achados timbrísticos do Grupo Fundo de Quintal e dos sambistas do Cacique de Ramos; não ignorar o modo peculiar com que o funk carioca faz uso dos equipamentos de produção, desde os sintetizadores e drum machines dos 80 aos MPCs e softwares da atualidade. Longa e variada, a lista de tópicos a serem levantados por uma história do som na música brasileira atravessa todo o século XX.

A força que alimenta a quarta edição do Novas Frequências vem de um movimento em busca de novos ares. Essa força deve sempre ser direcionada para a tarefa de expandir os horizontes das novas gerações — e dos que querem se relacionar com a produção musical contemporânea — para além das platitudes midiáticas. O festival surge como discurso que rompe os breves espaços majoritários de informação, tomados por excessos de pautas e redundâncias. Sua alta qualidade curatorial, envolvendo cada vez mais nomes e mais países, também funciona como uma espécie de pedagogia da escuta, já que permite ao público ouvir, ver e debater horizontes que quase nunca estão em evidência. Suas atrações, debates e festas são cada vez mais amplos, espalhando-se pelos bairros da cidade, incorporando públicos. O festival também dá cada vez maior visibilidade ao som experimental, aos projetos, coletivos, selos, casas de show e gravadoras que fazem parte dessa expansão de linguagem.

Contudo, os artistas selecionados para este ano podem ser considerados para além da sina histórica do “novo” ou do “velho”, da continuidade ou da ruptura. Podemos, então, perceber como expressão, e não como ruptura progressista ou decadente, as abstrações rítmicas do Auto e do Hojer Yama, ambos contando com o experimentador paulistano Carlos Issa; as formas arrojadas e delirantes do Osvardo; as concepções tensionadas entre a composição e o improviso, presentes na apresentação do Quintavant Ensemble e no pontilhismo da dupla J.-P Caron e Marcos Campello; o techno/house live improvisado no encontro do 40% Foda/ Maneiríssimo com o Domina Live; a eletrônica mezzo experimental, mezzo dancefloor de Bruno Real e Iridiscent; os “eletroafrobeats” de Maga Bo, Omulu, Som Peba e Mauro Telefunksoul; e, por fim, uma intervenção poética em favor de um silêncio impuro: a arte sonora com Vivian Caccuri e sua Caminhada Silenciosa. Música presente (e não “do presente”), desdobrada a partir de outras relações com o som e com a própria noção de “música”.

Não se trata de negar em absoluto a canção popular, muito menos de criar uma espécie de divisão entre consumidores de música “brasileira” e “musica gringa”. O que está em jogo é justamente a possibilidade de outras bases sonoras ampliarem o vocabulário dessa música local e, principalmente, tornarem-se parte ativa de uma massa crítica sobre nossa história musical. Os resultados práticos, aliás, estão cada vez mais no prato do dia, como os trabalhos recentes de cantores e cantoras que, mesmo aliados ao viés pop da canção brasileira, incorporam o ruído e o grave, a dissonância e a máquina como elementos vitais e autorais em suas criações. A persistência em realizar um festival como o Novas Frequências nos faz acreditar que algo está mudando na paisagem sonora do Rio de Janeiro e do país como um todo.

Pensamos, assim, em uma “transistória” — uma história que possibilite a emergência de outras memórias, memórias crítico-poéticas, memórias que pulsam sobre outros tempos que não o tempo social-cronológico da canção. Tempos multilineares, multidirecionais. O tempo das subjetividades, das escutas particulares, da abertura para a interpretação e para deixar-se afetar por algo além (e ao lado) da canção assobiável. Uma “transistória” da música no Brasil que não separasse o “folclore” de música urbana, que descartasse categorias pautadas na produção dos grandes consensos, que não minimizasse a expressão sonora como dado fundamental da apresentação, que evitaria desprezar formas de gravação, efeitos, experiências e demais possibilidades associadas ao som. Uma história que considerasse o problema da canção em paridade com o “acompanhamento” (o arranjo), com a pesquisa de timbre e altura, com as condições sonoras, com criatividade dos técnicos. Essa transistória não elegeria estratos exclusivos de invenção (o modernismo, a bossa, o tropicalismo), reconhecendo a invenção em todas as matérias sonoras desenvolvidas em âmbito nacional e entre as fronteiras reais e imaginárias. Quem sabe assim, em um futuro não muito distante, novas gerações considerem Figner e os pioneiros da gravação no Brasil tão importantes quantos as vozes eternas de nossos cantores.


Formas minimalistas: entre a meditação e o delírio

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Por: Arthur Tuoto (Trabalha com vídeo, fotografia e novas mídias)

Se por um lado o minimalismo parte de uma essência musical quase primária, um projeto sonoro que em um primeiro momento pode até soar limitado em seus elementos pontuais e formalistas; por outro, a própria natureza do gênero tem uma qualidade nitidamente expansiva, uma estrutura que, justamente por sua condição universal, está sempre aberta a novas investidas, assumindo-se como uma base sonora de possibilidades infinitas. Um gênero que transita entre a matemática e a mais pura intuição, sempre em prol de um bem comum: a experiência sonora. Essa qualidade experiencial ganha súditos tanto de formação clássica como contemporânea, caminhando livremente entre o erudito e o eletrônico, seguindo uma tradição unificadora que parte de repetições, lentas transformações e da pura harmonia consonante para compor viagens tão complexas como sedutoras.

Os 50 anos de “In C”, de Terry Riley, uma das obras fundadores do gênero, faz de 2014 um ano essencial para a celebração dessa utopia musical. O que começou com os experimentos processuais de La Monte Young, Terry Riley, Steve Reich, entre outros, hoje alcança uma paleta sonora bastante diversificada, ainda que mantendo uma mesma tônica definidora. Nesta edição do Novas Frequências, teremos a oportunidade de presenciar três propostas que, de uma forma ou outra, dialogam com o minimalismo a partir de abordagens bastante particulares entre si. Nada melhor do que testemunhar ao vivo as possibilidades de um gênero que, historicamente, solicita toda uma dimensão performática em sua própria natureza para ser intuido com a reverência que merece.

O Quest, formado pela dupla portuguesa Joana Gama e Luís Fernandes, parte de uma junção de forças que já vem se tornando clássica: a solenidade do piano e a variedade timbral do eletrônico. As manipulações analógicas de Fernandes formam uma base sonora tétrica mas ainda dinâmica, prezando por uma aura sombria, quase fantasmagórica, que encontra nas notas de Gama uma harmonia que vai da melancolia ao delirante em uma afinidade sempre envolvente. Uma força claramente espacial, evidenciando inclusive a experiência dos dois artistas com trabalhos instalativos.

É nesse mesmo jogo de forças entre vocação tradicional e processamento eletrônico que Laraaji constrói seu trabalho. Partindo de instrumentos como a cítara e a auto-harpa, o artista compõe um paralelo místico onde a acústica instrumental é potencializada a níveis etéreos pelo arranjo eletrônico, elaborando viagens transcendentais que tem origem na própria concepção da ambient music. Uma qualidade luminosa, celestial como o próprio gosta de definir, que tem a capacidade de nos levar a transes hipnóticos em que a própria noção do tempo ganha novas dimensões. O homem com o sonho de se tornar comediante stand-up, hoje encontra no riso uma aptidão meditativa e se assume um estudioso das vibrações em prol da saúde da alma.

Conservando uma inclinação fundamentalmente clássica, ainda que subvertendo sua bases tradicionais em prol de novos horizontes, Lubomyr Melnyk compõe epopéias ininterruptas para o piano que evidenciam toda uma fisicalidade performática em sua velocidade e destreza. Diferente da ambient music unificadora e meditativa de Laraaji, Melnyk relocaliza sua narrativa melódica a todo momento, assume uma acentuação rítmica não-linear que nos mantêm sempre atentos em um frenesi sonoro estimulante. Famoso pela velocidade que atinge ao tocar o piano, mantendo uma média sem igual de notas por segundo, o polonês faz da sua “música contínua” a própria imagem da índole performática do minimalismo, um equilíbrio entre foco e presença, uma maratona imprevisível e hipnótica.

Seja pelo embate entre solenidade clássica e ruído analógico do Quest, pela disposição mística de Laraaji ou pela melodia que se reinventa constantemente em Lubomyr Melnyk; podemos afirmar que todas essas virtudes nunca apontam para objetivos claros, não se interessam por pontos de chegada, reiteram a máxima de que o sentido aqui é a experiência em si, a jornada que preza pelo encantamento acima de um significado objetivo. Se 50 anos atrás, Terry Riley lançava mão do cruzamento entre matemática e intuição, controle e improviso, para conceber com seu mítico “In C” a polirritmia como uma das bases geradoras do minimalismo; é com felicidade que celebramos esse fazer musical que se altera constantemente pelo próprio fazer, uma história sonora sempre pronta para ser reescrita.


O Quarto Mundo

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Por: Thiago Filardi

“Quarto mundo”, na política, pode se referir a populações excluídas da sociedade, povos nômades e agricultores, alheios à era industrial, ou habitantes de países do Primeiro Mundo, mas cujas condições são de Terceiro Mundo. O conceito diz respeito a pessoas que vivem em regiões aonde a tecnologia sequer chegou, apesar da globalização e do world wide web. Mas a acepção musical de “quarto mundo”, cunhada pelo músico norte-americano Jon Hassell, em 1980, no álbum Fourth World: Vol. 1 – Possible Musics, gravado com Brian Eno, prega uma visão contrária a essa, ou, pelo menos, mais idealista: o encontro desses mundos e o de culturas tradicionais orientais e ocidentais com a tecnologia moderna (“as músicas possíveis”). No disco seminal, Eno e Hassell combinam bases eletrônicas minimalistas, percussões indianas, sintetizadores e técnicas de trompete inovadoras de Hassell, que foram influenciadas por seus aprendizados com o guru Pandit Pran Nath, resultando em um dos timbres musicais mais exóticos e singulares da história da música.

Uma figura que pode ser associada aos primórdios do “quarto mundo” é o norte-americano Edward Larry Gordon, mais conhecido como Laraaji, que foi descoberto por Brian Eno no final dos anos 70 e gravou o terceiro volume da série Ambient, Day of Radiance (1980). Desde então, ele vem trazendo para o mundo ocidental, através da cítara (zither em inglês; não confundir com o sitar indiano), seu principal instrumento e de suposta origem chinesa, sonoridades delicadas e celestiais, realçando aspectos meditativos (também mais comumente relacionados à cultura oriental). Aspectos esses extraídos não apenas de sua música, influenciada por Terry Riley, Sun Ra e John Coltrane, mas também de sua personalidade, mística e espiritualizada. No entanto, vale mencionar que Laraaji não faz um uso tradicional da cítara, mas a manipula eletronicamente, o que dá aos seus discos uma aura especial e única.

Outro projeto contemporâneo que dialoga com ancestralidades orientais e as filtra através de técnicas modernas de fazer música e soar um instrumento, como a extended technique e o sample, é o Tarab Cuts, dos ingleses John Butcher e Mark Sanders. O conceito de tarab remonta à cultura erudita árabe do início do século passado e significa a fusão entre música e transformação emocional. O saxofonista Butcher, que compôs a peça, e o baterista Sanders trazem o tarab, expressão sem equivalentes em nenhuma língua ocidental, aos dias de hoje através de improvisações e multitracking de faixas tiradas da coleção de 78 rotações de música clássica árabe de 1903 a 1950 (cerca de 7 mil discos) do músico libanês Tarek Atoui. Além do saxofone e bateria, há a presença dos instrumentos tocados nesses discos, como o ney e o oud, cujos primeiros registros datam de 5 mil atrás no Oriente Médio, o violino e os cantos e percussões Sufi.

Mas enquanto Butcher, Sanders e Laraaji tocam uma esfera mais contemplativa e emocional do “quarto mundo”, artistas como William Bennett, do Whitehouse e Cut Hands, e Ben Frost se aproximam da música africana de uma forma mais intensa e áspera. Tanto é que Bennet, inicialmente, cunhou seu projeto Cut Hands como Afro Noise e, em seu último disco, Festival of the Dead, dá continuidade à estética sonora influenciada por músicas percussivas da África Ocidental, do Congo e de rituais de vodu haitianos. No caso de Ben Frost, seu último lançamento, A U R O R A, foi em grande parte escrito e concebido no Congo, aonde o artista viajou para fazer a trilha do filme The Enclave, de Richard Mosse. Lá, ele sofreu um choque cultural muito forte e, de uma maneira mais atmosférica, densa, texturizada e também imbuída de elementos percussivos, tentou reproduzir parte de sua experiência, que ele atribuiu como divisora de águas, dada a pobreza, a complexa situação política do país e o excesso de sons e signos por ele vivenciados.

Acercando-se da música africana, especificamente a de Burkina Faso — onde há uma vasta e rica tradição folclórica — por um viés mais melódico e, quiçá, fofo, o trabalho do músico dinamarquês Frisk Frugt acaba destoando do approach mais radical e selvagem de Frost e Bennett, embora ele também não dispense os elementos percussivos. Entretanto, seu álbum Dansktoppen Møder Burkina Faso I Det Himmelblå Rum Hvor Solen Bor, Suite (em português, “A Música Popular Dinamarquesa Encontra Burkina Faso no Espaço Céu Azul Onde Mora o Sol, Suíte”), de 2010, não é menos interessante e possui tamanha complexidade melódica e variação de instrumentos que é de deixar qualquer ouvinte estupefato.

Um artista que tem a tradição africana mais arraigada em sua origem é Marlon Silva, vulgo DJ Marfox. Nascido no Bairro da Portela, uma periferia de Lisboa, onde há uma descendência africana predominante, Marfox, desde jovem, assiste à mutação da música de gueto local, que mistura eletrônica com ritmos luso-africanos, como a semba e a kizomba, além do já tradicional kuduro. Seu último EP, Lucky Punch, funciona como um ótimo compêndio de todos esses estilos e influências, além de denotar o caráter cada vez mais diverso e multicultural da música eletrônica contemporânea.

Apesar de idealizado por Hassell há mais de duas décadas, o “quarto mundo”, como ele o imaginou, nunca fez tanto sentido quanto nos dias de hoje, em que assistimos a um interesse cada vez mais amplo e profundo de músicos e artistas europeus e americanos em conhecer e incorporar a música do Oriente e, principalmente, do continente africano. E a relação é quase recíproca, ou há 10 anos poderíamos imaginar que veríamos a música maliense representada pelo ngoni de Bassekou Kouyaté e sua banda em uma cidade do interior de Minas, ou um membro da família Kuti se apresentando em várias cidades do país, ou o grupo tuareg do Tinariwen convidando músicos de rock e folk para gravarem em seus discos? O fato de termos a presença de artistas ocidentais tão permeados pela cultura dita oriental em um festival como o Novas Frequências, no Rio de Janeiro, é mais uma prova de que o intercâmbio América/Europa x Ásia/África nunca foi tão intenso e unificador. Pode-se dizer que o “quarto mundo”, o belo conceito preconizado, praticado e fomentado por Jon Hassell é, hoje, uma realidade.


Questão de ritmo

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Por: Ruy Gardnier (Crítico e jornalista)

Uma das características mais misteriosas de um dos discos mais misteriosos surgidos nos últimos anos, Traditional Music of Notional Species Vol. 1, é que as músicas do lado A se chamam “Dances” e as do lado B se chamam “Themes”. E que, num disco que parece ter o ímpeto de fazer nascer a música do zero, figurando um povo imaginário — a espécie nocional — e inventando-lhe uma música tradicional, a ideia de ritmo a partir dessas duas palavras, “dança”, “tema”, seja tão presente. Ritmo explícito para as danças, implícito para os temas (um tema para casamento, um tema para funeral precisam respeitar o ritmo da liturgia). E no confronto com a audição do disco de Rashad Becker, que surpresa: uma cadência, sim, alguns elementos de repetição, sim, mas nada sequer parecido com um pulso periódico que norteie a sensação do ouvinte, recoloque suas percepções na contagem de quatro que povoa uma vasta porcentagem do que se entende por música eletrônica.

Mas, como ritmo não se resume a andamento nem a pulso, é preciso levar a sério as opções de Becker em nomear suas aberrantes criaturas. Pois ainda que o que há de magistral do disco não sejam os ritmos — são, indubitavelmente, os ataques cheios de glissandos de timbres sintéticos inauditos —, há uma severidade na manutenção sempre lenta da cadência e da relação entre aparecer/desaparecer de elementos sonoros novos que cria uma vigorosa tensão na percepção de quem ouve, realmente fundindo uma certa noção mental de música tradicional (ritualística, comunal, codificada pelas necessidades do grupo) mas indo também à frente da vanguarda para cunhar novos sons e organizá-los de modo incomum.

Se Rashad Becker utiliza uma nesga de ritmo para dar uma conformação perceptiva ao universo sonoro que cria, Keith Fullerton Whitman vem desde Disingenuity/Disingenuousness botando abaixo as noções de repetição e permanência que num dado momento foram tão importantes em sua obra. Dos amparos tradicionais de ritmo não há nada, pulso, cadência constante, andamento… e mesmo assim tudo é ritmo nas ensandecidas dinâmicas de velocidade e nas percepções de cheio e vazio que preenchem nossa sensibilidade à medida que tentamos — e felizmente não conseguimos — capturar o sentido total de todos aqueles trocentos sonzinhos microscópicos que parecem ao mesmo tempo absolutamente compostos e absolutamente frutos de felizes acasos. Na ausência do ritmo, só ritmo há.

Estratégia outra é a de Sasu Ripatti e Mark Fell em suas obras recentes. Se KFW e Becker abstraem, Ripatti e Fell dinamitam por dentro o domínio do ritmo estável produzido por caixa, bumbo e contratempo que norteia todos os subgêneros mais conhecidos da música eletrônica. Em seu projeto Sensate Focus, Mark Fell flerta com o ideário cartesiano (ao invés de lados A e B do vinil, lados X e Y, como as coordenadas gráficas) mas seu objetivo é criar desorientações rítmicas a partir de um subgênero eletrônico bastante dócil e popular, o garage house. Fragmentos de vocal feminino, bumbo, caixa e contratempo estão lá, mas nunca exatamente no lugar certo. Seja por subtração (sentir que um bumbo ou uma caixa deveria estar lá e não está), seja por repetição (ver um pulso ou um compasso insistente durando mais do que deveria em condições normais), seja por proliferação (elementos que incidem mais do que deveriam, ou onde não deveriam), a sintaxe habitual que torna uma faixa de garage house dançável é impiedosamente burlada, e suas matérias primas são transformadas em puros ingredientes de experimentação. Mas não é uma música zombeteira: há um amor implícito a todas as sonoridades e formas de arranjo do gênero que norteiam as opções de composição que estão à mão. Não é negar, é dar um passo além, mais especulativo.

Se Mark Fell com seu Sensate Focus apodera-se de um campo sonoro mais aprazível para fincar suas garras, Sasu Ripatti traz para si os extremos de velocidade do footwork de Chicago em seus últimos lançamentos pelo recém-criado selo Ripatti. Assinados como Ripatti, como Vladislav Delay ou como Heisenberg (esse último um duo com Max Loderbauer), esses EPs nomeados a partir do número de série do selo atacam com radicalidade inesperada ao apropriar-se do footwork e do que ele tem de mais radical em termos de velocidade e batida quebrada, e retirar-lhe o aspecto de soul e R&B que o torna mais carnal. O resultado? Uma soberba desorientação rítmica que consegue casar o cerebralismo de Mark Fell com o senso de molecagem de Aphex Twin em seus momentos mais caóticos.

Organizador implícito em Rashad Becker, hiperexistente pela própria ausência em Keith Fullerton Whitman, implodido pelo excesso nas produções recentes de Mark Fell e Sasu Ripatti, o ritmo ainda é campo de batalha e protagonista nas lutas em prol da desestabilização perceptiva que quase toda melhor arte produz. Tão velho, tão propulsor do novo.


Como sempre, como nunca

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Por: André Gomes (Editor do portal português Bodyspace)

Olhando para trás, é difícil encontrar um momento em que a música portuguesa tenha sido tão diversa e ampla na sua proposta. Ao mesmo tempo, não há memória de um período em que os artistas portugueses, nas mais variadas áreas, tenham levado a sua música para fora das fronteiras do país com esta expressão e cadência, nas mais variadas expressões musicais. Não será necessário que passem um par de décadas para que tenhamos a certeza que vivemos uma época dourada na música portuguesa. E isso aplica-se também no que diz respeito às músicas “avançadas” — experimentais, avant garde, exploradoras, chamem-lhe o quiserem. Se os anos 80 e 90 foram palco de variadíssimas experiências a esse nível (como, por exemplo, os Telectu, de Jorge Lima Barreto e Vitor Rua, ou os Osso Exótico), e muitas delas deram frutos que podem ser colhidos ainda nos dias de hoje, foi na década passada que essa realidade ganhou uma dimensão superior não só no número de produtores, de agentes, como no público interessado em absorver essa oferta. No espaço de dois ou três anos, sem nenhuma explicação particularmente evidente, mas certamente influenciada pelo número de artistas estrangeiros que passaram pelo país no início da década, nasceram e multiplicaram-se as bandas de norte a sul — com especial incidência em Lisboa — e com elas chegaram novas editoras (como a Merzbau e a Esquilo), novas salas, novas promotoras e novos hábitos. Bandas como os Frango, Lobster, CAVEIRA, Loosers, One Might Add, Lemur, PCF Moya, Gala Drop, Osso, colectivos como a SOOPA, entre muitos outros, mudaram o panorama musical português no que diz respeito à música longe dos holofotes. Chamou-se-lhe Música Periférica Portuguesa quase por piada, quase por ser próximo da verdade. Mostravam a sua música em CD-Rs, produziam os seus próprios cartazes, faziam a própria comunicação dos concertos (numa altura em que não havia muitas publicações centradas nessa realidade): será justo dizer que reinava o DIY. Como sempre, como nunca. Nesta altura assistiu-se ainda a um fenômeno curioso e frutífero de cruzamento entre esta nova geração e uma outra gerações de criadores (Manuel Mota, Sei Miguel, Rafael Toral, entre outros), um encontro de vontades que foi acontecendo em discos e nos palcos — e que sucede ainda hoje. Espaços como a Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, que nesta altura assumiu um papel fundamental ao dar palco a muitos destes projetos, assim como o Maus Hábitos e o Passos Manuel, no Porto, entre outros, ajudaram a colocar esta “música periférica” no mapa. Em 2004, e também a reboque desta nova realidade musical, aconteceu a primeira edição do OUT.FEST, em Barreiro, um festival que cresceu em ambição e importância e que continua até hoje a segurar a bandeira da música experimental. Esta é também uma história de descentralização; regional, de meios, de formatos, de públicos. As “novas frequências” da música portuguesa manifestam-se hoje em círculos muito distintos; muitas vezes sob influência direta de tudo o que foi construído ao longo dos últimos anos. Aos atores de sempre juntam-se novos atores; mais novas editoras, mais novos festivais, mais novas promotoras, novas salas de concertos. Os exemplos são mais do que muitos. Festivais de música eletrônica experimental como o SEMIBREVE, em Braga, fundado em 2011, ou oMadeira Dig, na Ilha da Madeira, que nasceu em 2004, são um ponto de encontro essencial entre “produtores” nacionais e internacionais. Reaberto desde 2006, o Teatro Maria Matos (Lisboa) tem vindo a assumir as despesas de apresentar ao grande público — e com sucesso — propostas que, regra geral, passam ao lado dos radares das grandes salas nacionais. O GNRation (Braga), com programação de Luís Fernandes (The Astroboy), parece querer aplicar a mesma receita no norte do país. No Porto, a Sonoscopia, fundada por vários músicos e artistas (alguns com ligação ao colectivo SOOPA), tem vindo a afirmar-se cada vez mais como a casa das músicas experimentais da cidade. Ainda em Lisboa, a Filho Único, promotora criada por Nélson Gomes e Pedro Gomes (em tempos programadores da Galeria Zé dos Bois), tem desempenhado um papel fundamental na cidade e no país, assumindo a curadoria de ciclos de concertos em vários locais. A Príncipe Discos, a editora que Nélson Gomes e Pedro Gomes fundaram com Márcio Matos e José Moura, tem tido um papel essencial nos últimos anos na área da música de dança (seja housetechnokudurokizombafunaná, ou outras), trazendo dos subúrbios Lisboa para o centro das atenções nomes como DJ Marfox, DJ Nigga Fox, DJ Firmeza, entre outros. A Terrain Ahead, uma editora ligada à música de dança que nasceu no Porto mas tem exportado vários produtores para outras paragens. Noutras coordenadas, o projecto Quest, em que Luís Fernandes e Joana Gama, desafiados pelo Theatro Circo (Braga), fundem o piano e a música electrónica, é um exemplo, entre muitos, que simboliza a confirmação da vitória (da teimosia) de uma certa música em Portugal: desafiante, fora dos radares, com os dois olhos apontados ao futuro. A prova que um país e a sua cultura só se constroem realmente no “confronto” com a contemporaneidade. Visto daqui há motivos para acreditar no que está por vir.


Cada um no seu quadrado

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Por: Vivian Caccuri (Artista plástica)

Por muitas décadas a América Latina se empenhou em incorporar o pensamento europeu na hora de construir e programar os espaços onde experimentamos a arte e a música: a arquitetura da sala de concerto moderna parte do princípio do silêncio absoluto para eliminar interferências nos sons produzidos pela orquestra. O teatro do séc XX aconteceria também a partir do silêncio e do escurecimento da sala, uma forma de marcar o início do espetáculo: essa técnica foi inventada por Wagner no séc XIX para estimular uma plateia quieta e concentrada. O museu modernista foi por muito tempo um projeto de espaço “sem ruído”, um lugar ideal para a pureza da visão. E o que dizer sobre a cor branca de suas paredes? O cubo branco foi desenvolvido simultaneamente pelos construtivistas soviéticos, instituições norte-americanas e pela Bauhaus. Depois que a escola foi fechada pelos nazistas na década de 30, o branco tornou-se a cor padrão dos museus do regime e só depois do fim da Segunda Guerra tornou-se dominante na França, Inglaterra e também no Brasil.

Após décadas de assepsia de branco, escuro e silêncio, foram necessárias obras de arte ambiciosas e provocadoras para revelar e deixar palpável o silêncio e as convenções desses espaços, fazer um público às vezes anestesiado perceber que está na verdade dentro de uma instituição e que alguém decide essas coisas: alguém decide que as paredes são brancas, que ninguém pode falar durante um concerto, que as cortinas se abrem em um momento e que a falta de interferência é o ideal para a experiência artística. O mais interessante aqui é ter em mente que nem sempre foi assim. Pessoas protestavam, gritavam e vaiavam no teatro elizabetano, que não era apresentado no escuro. A música popular do Renascimento só se separava da rua quando o artista era chamado para tocar nas galerias dos palácios. Os primeiros museus de arte europeus empilhavam quadros lado a lado em salas cheias de cores, plantas e móveis.

E hoje, fora do ambiente supostamente “puro” dos museus, teatros e salas de concerto modernos, o mundo acontece e produz ruído. O silêncio perde espaço para os motores, para os celulares, para todos os sons eletrônicos, telas de LCD e propagandas. O silêncio torna-se uma ideia cada vez mais fantástica, enquanto vai se transformando em matéria rara, uma espécie em extinção, uma substância muito difícil de se extrair. O silêncio muitas vezes se confunde com utopia e necessidade de fuga. Quantos retiros não existem hoje prometendo uma experiência reveladora, transformadora, um jejum de silêncio por dias ou semanas em lugares reclusos, fora das cidades grandes? O que é que o som do mundo contém de tão perturbador, de tão tóxico a ponto de se precisar de um “spa” pra se livrar dele e de um cubo branco para deixá-lo para fora?

Em algum lugar entre esses dois mundos — o mundo “limpo” dos cubos brancos e o mundo real, da cidade, do barulho, da multidão e da natureza — perambulam os artistas. Alguns se sentem muito à vontade dentro da pureza do espaço institucional, outros preferem ficar bem longe dela. Os mais interessantes, na minha opinião, são os que querem conciliar esses dois mundos. O que que um artista pode fazer para que se aproximem? Como trazer som para os museus, informalidade para os auditórios e ao mesmo tempo construir galerias efêmeras no espaço público, ambientes de concentração poderosa no meio da cidade? O som é com certeza uma ferramenta com a qual um artista conciliador desafia essas fronteiras e desmonta convenções que muitas vezes se tornam quase óbvias e naturais para o público.

O japonês Aki Onda é um desses artistas conciliadores. Ficou conhecido com seu projeto Cassette Memories no começo dos anos dois mil por utilizar um walkman de fita-cassete para gravar, reproduzir e manipular sons que capta nos mais diversos ambientes e situações, e realiza suas performances também em ambientes de “cubo branco”. É inevitável que ações desse tipo funcionem como uma ponte para trazer o som do mundo como matéria viva para o ambiente do museu, além de estimular o público à contemplação auditiva, um tipo de concentração física e mental que fica enfraquecida por debaixo da intensidade do ruído da metrópole. Por outro lado, na medida em que os museus trazem para suas programações a arte sonora e a música, atenuam toda a intolerância ao barulho do mundo que incorporaram em sua arquitetura e em suas políticas ao longo do séc XX.

Pensando nisso, foi bonito ver as fotos de Aki Onda se apresentando na École Nationale Superieure des Beaux-Arts de Paris em 2013, em uma sala que se chama La chapel des Petits-Augustins. Esse espaço se manteve ao longo de quatro séculos na forma em que o museu de arte costumava ser antes da hegemonia do silêncio e do branco: as paredes cobertas de pinturas dos rodapés ao teto, sem preocupação de espaços de respiro para vê-las individualmente. No meio desse mundo de imagens, Aki Onda fazia soar a também intensa sobreposição de suas fitas-cassetes, cujas gravações, segundo ele, já não se lembra mais onde foram feitas ou sobre do que tratavam.

É tempo de conciliação. A arte sonora e os trabalhos que estimulam a contemplação auditiva parecem ter vindo para que os museus e teatros façam as pazes com a bagunça acústica do mundo real e da vida. É também tempo de apostar mais na sofisticação da sensibilidade do público em relação à sonoridade e a música, como faz o Novas Frequências e tantos outros festivais pelo mundo. O silêncio e a concentração não precisam mais ser uma regra vinda de cima para baixo: na medida em que o público se torna consciente de seu próprio ouvido, é absolutamente capaz de gerar seu próprio conforto mental e seu espaço interno de contemplação. E esse espaço pode ser silencioso, ou não.

Vivian Caccuri realizará uma Caminha Silenciosa exclusiva para o Novas Frequências no dia 03/12.
Inscrições – https://www.facebook.com/caminosilencio